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Você sabe o que acontece quando gays querem adotar um filho?

O casal David Harrad (à esquerda) e Toni Reis com os filhos adotados Jéssica, Alyson e Filipe (da esquerda para a direita) - João Otávio Pedroza Ferreira/Arquivo pessoal
O casal David Harrad (à esquerda) e Toni Reis com os filhos adotados Jéssica, Alyson e Filipe (da esquerda para a direita) Imagem: João Otávio Pedroza Ferreira/Arquivo pessoal

Yannik D'Elboux

Do UOL, no Rio de Janeiro

03/02/2015 07h08

Se apenas a lei for levada em consideração, atualmente, não há nada que impeça ou dificulte a adoção de crianças por casais homossexuais. Entretanto, essa realidade ainda é muito recente na história do Brasil e até hoje pode esbarrar no preconceito.

Somente em 2006, saiu a primeira sentença favorável à adoção por um casal de mulheres. "Se existe alguma resistência ou dificuldade é por conta do preconceito de quem lida com os processos: psicólogos, assistentes sociais, juízes ou o ministério público", explica Maria Berenice Dias, presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que participou do julgamento envolvendo o casal de lésbicas em 2006.

O reconhecimento da união estável homoafetiva, em 2011, e a resolução que obrigou os cartórios a realizarem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, a partir de 2013, facilitaram os procedimentos legais para a adoção conjunta pelos homossexuais.

Na prática, mesmo antes dessas medidas, já havia crianças sendo criadas por famílias gays. "A adoção por homossexuais sempre existiu, porém apenas uma pessoa adotava e a criança ia morar em uma casa com dois pais ou duas mães", diz Maria Berenice.

O problema, nesses casos, era que o adotado não tinha todos os seus direitos assegurados pela lei. "Se morresse o parceiro do adotante, a criança ficava sem ninguém, não herdava o patrimônio. E se houvesse separação não teria pensão, direito de visita", explica a advogada.

Filiação na certidão

Por mais que pareça um detalhe tolo, o fato de a certidão de nascimento trazer o nome do pai e da mãe complicava a vida dos juízes. Uma resolução do Conselho Nacional de Justiça, de 2009, modificou o documento para constar apenas o termo filiação, sendo possível, assim, incluir dois pais ou duas mães.

"Foi uma solução pensada para contemplar legitimamente a adoção por casais gays. Hoje, ninguém é preterido, prejudicado ou tem um processo indeferido por ser homossexual", afirma Fabiana Gadelha, presidente do Grupo de Apoio à Convivência Familiar e Comunitária Aconchego, de Brasília (DF).

Na opinião de Fabiana, dizer que a adoção por casais homossexuais é mais lenta ou difícil é um mito. "É como qualquer processo judicial: exige uma burocracia que qualquer pessoa é capaz de cumprir. Leva tempo porque a justiça é desestruturada", diz. Ela acredita que os eventuais problemas são pontuais. "Mesmo que o juiz seja preconceituoso, na segunda instância a adoção é deferida [aprovada]", fala.

O filho adotado do professor Toni Reis, 50, e do tradutor David Harrad, 56, moradores de Curitiba (PR), tem, desde 2012, os nomes dos dois pais na certidão e ganhou seus sobrenomes. Porém, a conclusão desse processo veio depois de uma longa espera pela chance de formar uma família.

Eles deram entrada na habilitação para adoção conjunta no ano de 2005. Foi o primeiro pedido desse tipo na Vara da Infância e Juventude à qual estavam atrelados. Sem precedentes para emitir um parecer, o juiz demorou quase três anos para proferir sua decisão.

Mas ele estabeleceu que os dois poderiam adotar como casal, porém com duas restrições: apenas meninas e acima de 10 anos de idade. "Recorremos da decisão por acharmos discriminatória. O Tribunal de Justiça do Paraná entendeu unanimemente que não deveria haver qualquer restrição", conta Toni Reis.

Finalmente, em 2011, o casal adotou Alyson Miguel, que hoje está com 14 anos, cujo processo de adoção já foi concluído. Desde o início de 2015, o casal tem a guarda de mais duas crianças, Jéssica, 11, e Filipe, 9. Agora, os trâmites caminham com menos empecilhos. "Está sendo muito mais fácil, tanto no processo burocrático quanto na adaptação", diz o professor.

Avanços e retrocesso

Para que a discriminação não encontre espaço no judiciário, Maria Berenice defende a aprovação do Estatuto da Diversidade Sexual, com objetivo de garantir os direitos da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Na contramão dessa iniciativa, existe o Estatuto da Família, ainda a ser votado por uma comissão especial na Câmara dos Deputados, que proíbe a adoção por casais homossexuais.

Mesmo que seja aprovado, o Estatuto da Família não terá força para impedir a adoção pelos gays, já que os magistrados devem se apoiar, em primeiro lugar, na Constituição Federal, que prevê a igualdade de direitos, independentemente da orientação sexual.

Para o juiz Fernando Moreira Freitas da Silva, da 2ª Vara Cível, Criminal, da Infância e Juventude, de Sidrolândia (MS), a sexualidade não é um fator relevante nas decisões judiciais relativas à adoção.

"Tratamos os homossexuais como os heterossexuais, sem nenhuma distinção", garante. Mas ele reconhece que, às vezes, os envolvidos nos processos são guiados por outros aspectos além da legislação. "Vivemos em um país onde a religiosidade é muito latente e isso poderia influenciar uma decisão ou um laudo", diz.

O magistrado, há pouco mais de um ano no cargo, concedeu a primeira liminar favorável à guarda e à adoção de um menino de 10 anos na comarca, que estava com os processos paralisados, a um casal homoafetivo. "Recebi o pedido com muita alegria porque já havia feito contato com casais na comarca, no estado e até em âmbito nacional e ninguém tinha interesse", revela.

Para o juiz, os homossexuais apresentam algumas vantagens nas adoções, como o fato de não limitarem a faixa etária. "Eles, geralmente, têm uma vida financeira estável e uma abertura para crianças maiores. Os héteros querem crianças de até 2 anos de idade. É raro alguém que aceite acima dessa idade", diz.

Procedimentos para adoção

Os interessados em se candidatar à adoção devem, em primeiro lugar, procurar uma Vara da Infância e Juventude. A habilitação dura, em média, um ano e não existe nenhuma pergunta na avaliação dos candidatos relativa à orientação sexual. Para adotar, é preciso ser maior de 18 anos e ter 16 anos de diferença de idade em relação ao adotado.

Depois de determinado o perfil da criança, que também pode ser encontrada em qualquer região do país pelo Cadastro Nacional de Adoção, o período até a obtenção da guarda varia de acordo com cada processo, que, geralmente, leva de um a cinco anos. É possível encontrar informação e suporte na Angaad (Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção).

Todo o processo é gratuito. Na adoção conjunta, deve-se comprovar a união estável. Ser casado no civil não é uma exigência, mas facilita os procedimentos. A vice-presidente do Grupo Aconchego orienta os interessados a terem paciência.

"As pessoas querem para amanhã. Mas, às vezes, a pessoa também demora cinco anos para engravidar. É um processo demorado, mas necessário, de amadurecimento, porque vai mexer com sua estrutura familiar", acrescenta.