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"Eu fiz um aborto": 2 mulheres que pensam bem diferente após a experiência

O fato de ter passado pelo procedimento não garante que uma mulher seja a favor da legalização do aborto - Getty Images
O fato de ter passado pelo procedimento não garante que uma mulher seja a favor da legalização do aborto Imagem: Getty Images

Natália Eiras

Do UOL

13/12/2016 07h15

No dia 29 de novembro, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal surpreendeu ao suspender a prisão preventiva de cinco funcionários de uma clínica clandestina de aborto de Duque de Caxias (RJ) e declarar que a prática, se realizada até os três primeiros meses da gestação, não é crime. O STF vai, ainda, julgar nesta semana a Adin (ação direta de insconstitucionalidade) que impede a abertura de processo e a prisão, previstos no artigo 124 do Código Penal, de mulheres que interromperem a gravidez por terem sido infectadas pelo vírus zika.

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Ambos os casos acenderam, nas redes sociais, a discussão sobre a descriminalização do aborto. Porém, mais do que um procedimento médico, a interrupção de uma gravidez pode deixar sequelas psicológicas nas pacientes. O UOL foi atrás de mulheres que já passaram pelo procedimento clandestinamente. Veja: 

"Me arrependi de fazer um aborto, mas sou a favor da legalização"

Sofia, 34 anos, de Goiânia (GO)

"Tinha 22 anos e uma família ignorante que achava que mulher tinha que casar virgem. Estava com quase três meses de gestação e faltavam dois meses para o meu casamento, mas estava começando a rolar uma pressão em casa porque engordei e a barriga estava começando a aparecer. Decidi, então, usar o cytotec, medicamento usado para problemas no estômago, para fazer o aborto.

Consegui o remédio com um colega da minha faculdade de Direito, que era filho de médico e que tinha feito em uma namorada recente. Inventei que era para uma prima e ele comprou o remédio para mim no mercado negro. Ele me falou, no entanto, sobre os riscos caso não desse certo, que a criança poderia nascer defeituosa e me deu um artigo falando sobre os casos que não deram certo o aborto. Mesmo assim, ele me ensinou a usar o remédio. Tomei o medicamento em um sábado à noite e, no domingo, o aborto de fato ocorreu.

O pai da criança não sabia do aborto, mas sabia da gravidez. Confesso que acho que ele desconfiou, mas ficou quieto porque era cômodo para ele, já que não teria que enfrentar o problema.

Não tive medo de ser presa. Nem pensei na hipótese, porque, como era estudante de Direito, sabia que não podia ir a hospitais ou ninguém poderia saber. Mesmo assim, fiz a curetagem em um hospital, mas eu inventei uma desculpa e o médico o fez. Foi péssimo todo o processo. Senti-me uma assassina, pois senti uma dor e vi o feto cair dentro do vaso sanitário. Fiquei com muito remorso e ainda sinto.

Senti-me covarde por não ter enfrentado a família e o falatório que viria com a gravidez. Minha mãe me criou sozinha e eu não queria que houvesse comparações.

Tive medo que não desse certo e a criança nascesse com má formação. Tive medo de passar mal, ter que ir para o hospital e as pessoas descobrirem. Mas a pior sensação foi a de que, lá no fundo, a minha moral nunca ia me deixar esquecer o que fiz.

Não faria de novo, fiquei me sentindo uma criminosa. O pior, no entanto, é saber que cometi um crime contra uma vida espiritual e que isso pode ser cobrado de mim a qualquer hora.

De qualquer forma, não sou contra a legalização do aborto por entender que vivemos em um país livre, democrático e laico, devendo assim ter uma legislação baseada na liberdade.

As pessoas devem ter opções de decidir o que querem fazer diante de uma gravidez indesejada. Porém, sou contra o aborto por convicções formadas diante de um problema vivenciado, não contra as pessoas terem o direito de escolher.

Ter o direito não quer dizer que as pessoas vão abortar mais. Ao meu ver, só vai diminuir os riscos para as mulheres que fazem aborto de forma clandestina sem a participação de um médico. Porque todo dia alguém faz um aborto dentro de seus lares e o poder público sequer tem conhecimento."

"Abortei quando era adolescente, mas sou contra a legalização"

Roberta*, 38 anos, de Florianópolis (SC)

"Engravidei aos 17 anos, após meu namorado não querer usar camisinha em uma relação sexual. Quando percebi o atraso menstrual, avisei ele e disse que estava desesperada, tinha acabado de entrar na faculdade de artes plásticas e meus pais eram muito conservadores. Ele disse, então, que daria um 'jeito' e conseguiu o cytotec [medicamento para problemas no estômago usado como abortivo] com um homem que já tinha muita experiência em usar esse remédio para interromper a gravidez.

Tomei dois comprimidos e inseri outros dois na minha vagina. Minha madrugada foi horrenda. Tive cólicas, contrações, suava frio e não podia chamar ninguém para me ajudar, porque se não elas descobririam. Meu namorado foi para casa dele e nem chegou a ver o remédio fazer efeito.

Comecei a sangrar, mas ainda assim fui trabalhar. Tive febre e fui ao banheiro, quando expeli um coágulo bem grande de sangue. Deveria ser o feto. Puxei a descarga e senti um calafrio horrível, me senti muito mal e vomitei.

Depois disso, eu nunca mais tive paz. Todas as noites eu ouvia um choro de bebê no meu ouvido. Uma vez sonhei que tinha um bebê cheio de sangue na minha cama chorando, pedindo para viver. Ninguém explica como um aborto mexe com o seu psicológico.

Meu namorado, depois, terminou comigo e eu questionei o fato de ele não ter me apoiado naquela noite. Ele disse que eu não havia sido mulher o suficiente e que, se eu tivesse encarado a bronca de ter um filho com ele, nós poderíamos ter sido muito felizes.

Assim, fiquei me sentindo ainda mais culpada. Comecei a me auto-destruir. Engordei muito, entrei em depressão, desenvolvi síndrome do pânico. Nunca contei a ninguém da minha família que fiz um aborto.

Eu me arrependi de ter feito porque achei que fui extremamente egoísta em achar que eu tinha o poder de decidir se uma vida nasceria ou não. Ninguém tem esse poder. Eu poderia ter tido e dado para adoção. A minha vida não melhorou em nada depois disso.

Também morri de medo de ir presa porque meu pai é policial e imaginava a vergonha que ele passaria comigo. Temi também que eu tivesse que ir para o hospital e descobrissem o que fiz.

Ainda assim, sou contra a legalização do aborto porque acho que esta seria uma medida paliativa. Sou a favor de uma política pública que eduque as crianças, meninos e meninas, sobre prevenção, amor próprio, machismo e feminismo. Sobre respeito.

Mesmo que o aborto seja descriminalizado, a mulher vai continuar sendo a principal prejudicada. Há muita coisa envolvida. Só quem sentiu na pele o que é um aborto, seja ele clandestino ou legalizado, sabe que as marcas ficam na alma para sempre.

Hoje, depois de eu ter um filho, entendo que um feto não é um prolongamento do meu corpo, como cabelo ou unha. É um outro corpo dentro do meu."

*O nome da personagem foi alterado para proteger sua identidade