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Já tive mais de 100 fraturas e criei uma ONG para bebês com ossos de vidro

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Helena Bertho

Do UOL, em São Paulo

05/04/2017 04h00

Regina Espósito, 58, conta como conviveu a vida toda com uma doença rara que deixa seus ossos frágeis.

"Aniversário de quatro anos do meu filho. Festinha em casa, crianças brincando e tudo correndo bem. Fui servir um lanche ao aniversariante, fiz um movimento rápido e senti na hora uma dor estonteante no meu corpo. Sentei e pedi para minha mãe chamar ajuda, enquanto tentava manter a calma e não gritar. Na minha perna, dava par ver o osso fora do lugar. Eu havia quebrado o fêmur e aquela situação boba iria me custar quatro cirurgias e oito meses engessada na cama.

Vocês podem estar pensando que isso é uma tragédia na vida de uma pessoa, mas para mim era só mais uma fratura. Uma das piores que tive, é verdade, mas ainda sim só mais uma das mais de 100 que já sofri – foram tantas, que nem consigo manter a conta mais.

Foto tirada um dia antes de Regina sofrer sua primeira fratura na vida.  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Foto tirada um dia antes de Regina sofrer sua primeira fratura na vida.
Imagem: Arquivo pessoal
Eu sofro de uma doença congênita rara chamada osteogênesis imperfecta ou, como se diz popularmente, tenho ossos de vidro. Essa doença faz com que meu corpo tenha pouco colágeno, o que deixa os ossos fracos. Quebrei meu primeiro osso com um ano de idade, no dia em que dei meu primeiro passo e levei meu primeiro tombo. Daí para frente, cada tombo foi uma fratura. Eu sou frágil, muito frágil, mas nunca deixei que isso me impedisse de viver. Muito pelo contrário: transformei minha fragilidade em força para ajudar outras pessoas.

"Não deixava minha deficiência me definir"

"Cuidado filha", foi a frase que marcou minha infância. Enquanto meus irmãos brincavam de queimada ou pega-pega, eu ficava com as bonecas e livros, tomando cuidado para não me machucar ao andar ou até ao sentar. Mesmo assim, não fui superprotegida. E eu vivia no hospital, colocando pinos ou imobilizada, mas minha mãe me deixava ir à escola e viver como dava. Ela me ajudava em tudo e não media esforços para encontrar alternativas que melhorassem minha vida. Até a fisioterapia ela aprendeu a fazer para me ajudar!

O meu jeito para lidar com isso, conforme fui crescendo, era estudar e aprender o máximo que pudesse sobre a minha doença. Perguntava aos médicos e devorava livros tentando encontrar formas de ter um pouco mais de conforto e liberdade. E dentro disso, tentava levar vida o mais normalmente possível, sem deixar que a minha deficiência me definisse.

Aos 16 anos me apaixonei por um vizinho e ele por mim. Começamos a namorar e quando eu tinha 17, casamos! Ele sabia o jeito de amar, sem machucar. Começando por abraços leves, fomos juntos descobrindo uma forma de viver a vida a dois sem que eu tivesse fraturas no amor.

"Não tive medo de fraturas no parto, não"

O primeiro fruto veio aos 18, quando descobri que estava grávida. Para mim, aquilo era uma alegria sem tamanho. Mas lembro da reação do meu médico de medo: "Como ainda está no começo, eu aconselho você a não seguir adiante". Eu olhei para a cara do meu marido e perguntei: "Ele está me aconselhando a tirar?".

Eu estava indignada, mas a preocupação dele fazia sentido: a gravidez poderia forçar demais meus ossos e a hora do parto provavelmente levaria a muitas fraturas. Além disso, como minha doença era genética, meu filho podia herdar. Mesmo assim, decidi correr o risco. Eu podia aguentar mais umas fraturas e se ele nascesse doente, bem... Minha mãe conseguiu me criar e eu era feliz, então qual o problema?

A gravidez até foi tranquila. Só depois do sexto mês que comecei a sentir uma dor muito forte no pé e descobri que tinha quebrado o tornozelo devido ao peso da barriga. E aos sete meses entrei em trabalho de parto. Foi parto normal, com fórceps e nenhum osso se quebrou! É que por ser prematuro, o Renê nasceu com menos de dois quilos, pequenininho, não deu muito trabalho para sair. E, por sorte, não tinha a doença.

Dois anos depois, era 1978 e por um problema com a fabricante do meu anticoncepcional, precisei trocar de remédio. Bem na troca, lá veio a segunda gravidez. Dessa vez o médico nem ousou sugerir que tirasse. Os riscos eram os mesmos, mas ele já sabia da minha posição.

Foi bem mais complicado dessa vez. Aos cinco meses comecei a sentir dores na coluna e meu fêmur trincou. Então tive de ficar de repouso total por quatro meses. Até que o Roni nasceu, de cesárea, pois era enorme, não tinha como minha bacia suportar o parto! E com ele, mais um lance de sorte: nada de ossos de vidro também!

Regina sofreu mais de 100 fraturas ósseas e realizou 23 cirurgias. A última foi em 2016.  - Arquivo Pessoal.  - Arquivo Pessoal.
Regina sofreu mais de 100 fraturas ósseas e realizou 23 cirurgias. A última foi em 2016.
Imagem: Arquivo Pessoal.

"Procurava ajudar pessoas com a mesma doença"

Com saúde de ferro, meus meninos eram cheios de energia e eu tentava acompanhar. Mas não pude curtir cem por cento a infância deles, porque com frequência fraturava alguma coisa, fosse brincando com eles ou servindo um sanduíche. Hospitais, repousou e imobilizações continuavam sendo parte da minha rotina.

Mesmo assim, eu levava a vida normalmente. Cuidava dos filhos, tinha meus amigos, curtia meu marido e escrevia. Eu sempre amei escrever. Outra coisa que sempre fazia era ajudar pessoas com a mesma deficiência que eu, com conselhos, indicando médicos ou até arrecadando alimentos, quando era necessário.

Em 1996, uma novidade empolgante surgiu. Um casal de vizinhos meus teve uma filha que não podiam criar, então eu assumi a responsabilidade e a adotei. Minha terceira, Gabriele, veio em um momento bem melhor: mais velha, com 38 anos, eu já sabia lidar melhor com meu corpo e tinha menos fraturas, então podia curtir sua infância.

Na Assembléia Legislativa de São Paulo, Regina exigia políticas inclusivas.  - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Na Assembléia Legislativa de São Paulo em 2016, Regina exigia políticas inclusivas.
Imagem: Arquivo Pessoal

"Fundei uma organização para ajudar crianças com ossos de vidro"

Isso podia ser resumo da minha vida. Mas assim como a minha deficiência nunca me definiu, a idade também não. Com 50 anos, surgiu uma oportunidade de apresentar um programa em vídeo pela internet, chamado TV Web. Lá eu fazia entrevistas e procurava sempre trazer o tema da inclusão de pessoas com deficiência para a mesa.

Fui ganhando visibilidade e a minha doença também. E o que antes eu fazia esporadicamente, ajudando pessoas, começou a se tornar cada vez mais comum. Pois mães de todo o Brasil cujos filhos nasciam com a osteogenesis imperfecta vinham me procurar pedindo ajuda.

Até que em 2012 aconteceu um caso que me marcou. Um menininho com osso de vidro em um grau muito forte não conseguia tratamento em lugar algum e eu assumi a briga ao lado da sua mãe. Procuramos autoridades, fizemos um escarcéu e não paramos até que um hospital aceitou recebe-lo. Com isso, ele pode ter condições de viver.

Isso me tocou tanto que decidi formalizar o que já fazia. Assim fundei a Anjos de Cristal, minha organização para ajudar outras mães de crianças que nascem com a mesma condição que eu.  Eu ajudo como posso. Muitas dessas mães e seus filhos precisam apenas de informação, e eu compartilho o conhecimento que adquiri em tantas décadas convivendo com os ossos de vidro. Outras precisam de uma cadeira de rodas ou uma prótese, então eu mobilizo todo mundo que conheço e não conheço e ajudo a arrumar. Para outras, o contato de um médico é o que falta. E muitas ainda precisam de um lugar para ficar quando vêm fazer consulta em São Paulo e, para elas, minhas portas estão sempre abertas.

Além disso, com frequência dou palestras para médicos e enfermeiros. Os livros podem ensinar muito da ciência dos ossos de cristal, mas eu posso mostrar a elas muito que não está no papel, pequenos detalhes do cotidiano, da forma de tocar, da posição de um gesso, que fazem toda a diferença para os pacientes.

Se a deficiência não me definiu nem me parou, não posso negar que ela me fez ser diferente, encarar muita coisa e o mínimo que posso fazer é passar adiante e mães como a minha e crianças como eu".