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"Sou mulher trans e realizei meu sonho de ser mãe com a minha melhor amiga"

Luiza Valentim, Graziela e o filho Hael - Arquivo pessoal
Luiza Valentim, Graziela e o filho Hael Imagem: Arquivo pessoal

Helena Bertho

do UOL

09/05/2017 04h00

Luiza Valentim, 27, estava no meio de sua transição de gênero quando descobriu que ficaria estéril e decidiu ter um filho com sua amiga Graziele. Em seu depoimento ao UOL, ela conta como foi todo o processo de se entender mulher e mãe ao mesmo tempo.

"Entender que sou uma mulher trans trouxe muitas questões e angústias à minha vida. Mas uma das maiores surgiu quando dei início à transição com hormônios e descobri que isso me deixaria infértil.

Aos 24 anos de idade, eu estava sendo informada que não poderia ter filhos, sendo que uma das poucas certezas que tinha era de que queria ser mãe.

Então surgiu a ideia que mudaria mais ainda a minha vida. Decidi propor para minha grande amiga Graziele, com quem eu dividia uma casa na época, que tivéssemos um filho juntas. Apesar de nosso relacionamento ser pura amizade, ela nem hesitou, na hora gostou da ideia e embarcarmos nisso juntas. Assim, pude viver ao mesmo tempo a experiência de me descobrir mulher e mãe.

"Só entendi que era trans quando tentei me matar"

Até os 22 anos, eu achava que era um homem e não entendia o que eu sentia, porque eu não me reconhecia no meu corpo. Tinha muito pouca informação e conhecimento sobre a questão da transexualidade. Só sabia que desde criança as pessoas me corrigiam. 'Anda direito.' 'Fala mais grosso.' Eram coisas comuns de ouvir e que foram me forçando a viver o tempo todo num personagem masculino, criando uma casca.

Isso me causava tanto sofrimento, que comecei a desenvolver síndrome do pânico e cheguei a tentar me matar. Eu estava completamente perdida quando encontrei uma médica que, depois de conversar comigo, me explicou direito o que era ser uma pessoa trans, contou como essas pessoas se sentiam e, conforme ela falava, eu ia me enxergando em suas palavras.

Saí dessa consulta sabendo que era uma mulher, mas ainda precisei passar por um longo processo de transição. Primeiro foram terapias, para então ir começando a assumir minha identidade e as mudanças no meu corpo vieram juntas.

Grazi, minha amiga do peito, esteve ao meu lado o tempo todo. Ela me emprestava suas roupas e me apoiava nos momentos de dificuldade. Meus pais também me deram todo o apoio do mundo.

Como moramos em uma cidade pequena, eram muitos os estereótipos e paradigmas que eu precisava quebrar. Digo até que foi um processo de imposição da minha identidade, porque o tempo todo a sociedade ficava tentando me falar quem eu podia ser ou não. Era difícil.

Mas apesar de ser difícil, era tranquilizador. Eu finalmente estava me identificando comigo mesma e comecei a ter perspectiva de vida. Antes da transição, eu não fazia planos, eu não pensava no futuro. O foco era em conseguir ser o que eu precisava ser a cada momento. A partir do momento em que me vi com mulher, isso mudou. Passei a imaginar minha vida dali para frente, sonhar e planejar. E um dos sonhos que se tornava mais forte era o de ser mãe.

"Combinamos de compartilhar toda a criação"

Por isso senti tanto medo quando soube que o tratamento hormonal me esterilizaria. Por sorte, Grazi topou a ideia na hora. Na verdade, ela adorou. Nós nunca tivemos um relacionamento amoroso, mas nossa amizade era enorme, quase irmãs. Então fomos procurar meus pais e explicar os planos. Sentamos eu, meu pai, minha mãe e Grazi e conversamos. Para nossa sorte, eles estiveram de acordo e ofereceram apoio desde o começo. 

Eu e Grazi também pesquisamos na internet formas de criarmos nosso filho da melhor maneira possível e fechamos um acordo de dividir sempre as responsabilidades. Em nosso plano inicial, o bebê ficaria morando um ano com cada uma.

Chegou então o momento de fazer o bebê e, como eu ainda não estava operada, fizemos na maneira tradicional. Nas semanas seguintes, já sabíamos que ela estava grávida e a confirmação veio logo, quando juntas fomos fazer o exame e vibramos com o resultado positivo.

"O nascimento dele foi a maior emoção da minha vida"

A gravidez foi legal demais, curtimos cada segundo juntas. A gente passava o fim de semana na beirada do rio, curtindo, a barriga crescendo... Dá até saudades! Mas essa fase passou para dar lugar para uma melhor, a chegada do nosso menino.

Ele nasceu de parto natural e foi lindo. De longe, a maior emoção da minha vida. Eu estava ali do lado, segurando a mão da Grazi o tempo todo e cortei o cordão umbilical. No mesmo dia ela saiu do hospital e fomos para casa com ele nos braços

Por um ano, compartilhamos a criação do Hael, enquanto a Grazi amamentava e eu dava continuidade à minha transição. Depois, ela precisou ir trabalhar em Belo Horizonte e ele ficou aqui comigo. Moramos na casa dos meus pais e eu curto o tempo todo as delícias de ser mãe desse menino e a Grazi vem aos finais de semana. No início de 2017 fiz a cirurgia de redesignação de sexo, agora tenho também os órgãos sexuais da mulher que sou.

Luiza, Graziele e Hael.  - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal
"Entendi que ser mãe é transmitir os meus valores para ele"

Ser mãe e mulher trans são dois processos de transformação que estou vivendo ao mesmo tempo, e as duas coisas são algo que preciso impor. O tempo todo preciso desconstruir os estereótipos e lidar com os preconceitos.

'Mas ele vai crescer sem pai?', tem gente que me pergunta. E eu preciso explicar que ser mãe ou pai é algo que vai muito além de gênero, tem a ver com cuidado e com os valores que você passa para o filho.

E foi exatamente isso que ficou destacado para mim, eu entendi o que realmente é ser mãe e isso tem a ver com transmitir valores para ele. Os mesmos valores de respeito e união que minha mãe passou para mim.

O resultado é que nosso filho é um fofo. Ele chama nós duas de mãe e procuramos desde já explicar tudo para ele. Por mais que ele não entenda direito, eu digo que antes mamãe vestia de menino e agora mamãe veste de menina. Quero que ele saiba tudo desde cedo, porque sei que nossa formação familiar não tradicional pode respingar nele, porque a sociedade ainda não está preparada.

A outra mãe fala: "Ter filho com uma amiga é ótimo porque nós de fato dividimos tudo"

"Eu sempre quis ter filho, mas não queria casar para isso. Então quando a Luiza me propôs engravidar durante a sua transição, eu gostei da ideia. A gente é muito amiga e com uma mulher, a gente de fato divide as tarefas. Se o Hael tivesse um pai, talvez eu não pudesse ter retomado minha vida depois da gravidez. Mas agora eu trabalho, vou voltar a estudar e sou uma mulher independente. Sem falar que é ótimo dividir isso tudo com a minha grande amiga, a gente tem os mesmos princípios e se dá muito bem. É maravilhoso compartilhar com ela essa conquista que é o Hael."