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'Quem é o pai?': mulheres revelam preconceitos de serem mães e lésbicas

Karoline Silva, lésbica e mãe de Safira, de pouco mais de 1 ano - Arquivo pessoal
Karoline Silva, lésbica e mãe de Safira, de pouco mais de 1 ano Imagem: Arquivo pessoal

Daniela Carasco

do UOL, em São Paulo

11/09/2017 04h00

A invisibilidade enfrentada pelas mulheres lésbicas se acentua ainda mais quando elas se tornam mães. Muitas, além de não serem aceitas pela própria família, enfrentam diariamente olhares de julgamento e comentários carregados de preconceito. A lista é longa: “Quem é o pai?”, “Como vai explicar ao seu filho que ele tem duas mães?”, “E a referência masculina?”, são alguns que elas ouvem com frequência.

Não à toa, grupos de apoio surgiram nas redes sociais para ampará-las em um processo muitas vezes solitário. No Facebook, uma busca rápida por “maternidade lésbica” resulta em três páginas, que juntas somam 3.300 membros e milhares de posts relacionados ao assunto -- dicas de inseminação caseira, desabafos e celebração de gravidez.

Essa crescente acompanha as estatísticas. O último Censo divulgado pelo IBGE, em 2010, mostrou que as formações familiares brasileiras estão cada vez mais diversas. Segundo o levantamento, existem 60 mil famílias homoafetivas no Brasil, e 53,8% delas são formadas por mulheres.

O preconceito começa em casa

A fotógrafa Anna Karoline Silva, 37, faz parte desse grupo. Sua gravidez aconteceu em 2015. Ela e a ex-companheira optaram pela inseminação artificial caseira, sem a necessidade de uma relação sexual. “Procuramos um doador que fosse conhecido da gente. Um amigo de infância da minha esposa na época aceitou nos doar o sêmen. A gestação vingou na primeira tentativa”, contou. “Quando contei pra minha mãe, ela quase me matou.”

Apesar de se sentir realizada com a filha Safira, 1, Anna se chateia com o julgamento familiar. “Minha mãe sempre questiona meu interesse por mulheres e diz que me falta vergonha. É bem duro ouvir isso. Já teve tia me perguntando sobre como uma mulher é capaz de engravidar outra e lamentando o futuro da minha filha”, conta. Para a fotógrafa, o amparo familiar é indispensável na hora de driblar a solidão da maternidade lésbica.

Comentários que magoam

Apesar de ser aceito pela família, o relacionamento de sete anos da agente de segurança pública Lorrany Figueiredo com a administradora Lidiane Faria ainda encontra uma série de rejeição nas ruas. Elas são mães dos trigêmeos Benício, Samuel e Vicente, de 1 ano e 4 meses, gerados por meio de inseminação artificial, feita em clínica especializada e com sêmen de doador anônimo. Por isso, frequentemente, são alvo de perguntas desrespeitosas.

“Quem é a mãe? Impossível serem as duas.” “Dois loirinhos e um moreninho? Esse deve ser a cara do pai.” “O que você vai dizer para eles no Dia dos Pais?”

Disfarçados de preocupação, comentários como esses são extremamente desrespeitosos, diz Lorrany, que os destaca como parte mais difícil da maternidade lésbica. “Sei que exercemos muito bem a função de mãe na vida dos nossos filhos. Nunca deixamos faltar nada e nem deixaremos. E no Dia dos Pais vamos dizer a eles que comemorem o fato de terem duas mães incríveis.”

Lorrany Figueiredo Lidiane Faria - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Lorrany Figueiredo e Lidiane Faria com os filhos Benício, Samuel e Vicente, de um ano e quatro meses
Imagem: Arquivo pessoal
A “falta” de referência masculina

Quando se tornam mãe de meninos, não faltam questionamentos sobre a ausência de uma figura masculina, aparentemente indispensável em uma sociedade patriarcal. “As pessoas se esquecem das inúmeras famílias lideradas e formadas apenas por mulheres, independentemente da orientação sexual”, rebate Lorrany.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011, o Brasil tem 5,5 milhões de crianças sem pai no registro.

Para a educadora social Elaine*, integrante da Coletiva Luana Barbosa, dedicada ao movimento lésbico, e mãe de um menino de 6 anos, essa noção de família tradicional exige que as lésbicas se provem boas mães o tempo todo e só reforça os estereótipos de gênero. “É como se não tivéssemos condição de educar uma criança por conta da nossa orientação sexual. Isso nos diminui. Fora o medo de achar que vamos influenciá-los a se tornarem homossexuais. Impossível”, diz.

Seu filho é fruto de um relacionamento heterossexual de sete anos, que chegou ao fim em 2014, quando ela decidiu enfim assumir sua própria sexualidade. “Já, inclusive, levei namorada em casa. Ele entende muito bem. A família do ex-marido desconfia, mas não sabe. Com certeza não aceitaria, eles são muito machistas.”

Invisíveis no ambiente escolar

Estudante de um colégio particular, o filho de Elaine recebeu recentemente um material de estudo sobre família, em que havia apenas uma configuração possível -- a de um casal de pais héteros. “Aquilo ia completamente de encontro com o que ele aprende em casa. Ele sabe, por exemplo, que duas mulheres ou dois homens também compõem uma família. A escola perpetua um modelo tradicional conservador. E a justificativa é a de que representa a maioria. É um despreparo e desamparo total, uma verdadeira fobia”, diz.

“Por isso, sempre digo que enfrentamos rejeição em todos os âmbitos. Ser mãe e ser lésbica é um ato político dobrado, que nos exige muita luta e resistência.”

*O nome foi trocado a pedido da entrevistada