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"Eu vivi aquilo e superei": 3 mulheres comentam cena de estupro em novela

Cena do casamento de Clara e Gael em "O Outro Lado do Paraíso" - Divulgação/Rede Globo
Cena do casamento de Clara e Gael em "O Outro Lado do Paraíso" Imagem: Divulgação/Rede Globo

Bárbara Tavares

Do UOL, em São Paulo

26/10/2017 14h51

“O Outro Lado do Paraíso”, a nova novela das 21h, mal estreou e já virou assunto entre as mulheres graças aos temas que está abordando: relacionamento abusivo e estupro marital, aquele que acontece dentro do relacionamento conjugal. Logo em seu segundo capítulo, exibido na última terça-feira (24), a trama mostrou o casamento dos protagonistas Clara (Bianca Bin) e Gael (Sérgio Guizé) e uma noite de núpcias marcada pela violência física e sexual. Depois da festa, Gael tornou-se violento com a nova mulher e a estuprou, tirando sua virgindade à força.

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A cena chocou a audiência e foi repercutida na internet. Enquanto uns telespectadores disseram que “estupro no casamento não é estupro”, a maioria saiu em defesa de Clara. Ao UOL, três mulheres que viveram relacionamentos abusivos dão suas impressões e percepções sobre a maneira que a trama mostrou a situação.

'"A cena da Clara poderia muito bem ser a cena da Julia*, vulgo eu. A diferença é que eu fui estuprada um dia antes do meu casamento. Durante a minha vida toda eu tive um sonho bobo de casar virgem, me entregar ao meu amor na noite mais especial das nossas vidas. E assim eu pensei que seria com o Eduardo*. Ele era seis anos mais velho que eu e nós namoramos apenas 1 mês e meio antes dele me pedir em casamento. Todo mundo achou rápido, claro, mas eu estava tão apaixonada que só queria casar logo. Casamos na cidade da minha família, no interior e, um dia antes da cerimônia, estávamos deitados na cama ansiosos pelo dia seguinte. Ele tinha bebido com os meus primos durante o dia, estava meio bêbado, mas nada fora do normal. Durante a noite ele começou a me acariciar com mais vontade (ele sabia que eu queria casar virgem, hoje acho até que foi esse o motivo pelo qual ele me pediu em casamento tão rápido) e, quando eu pedi pra ele parar, ele me virou de costas, colocou minha calcinha para o lado e me estuprou. Eu não chorei, não tive reação nenhuma. Apenas dormi e tentei fingir para mim mesma que nada tinha acontecido. Casamos, sim, e nos separamos 5 meses depois, quando ele surtou comigo por um motivo que eu nem lembro, mas fui parar no hospital com hematomas. Foi a primeira vez que meu pai viu o que acontecia. Depois ele nunca mais me deixou voltar para a casa em que eu morava com o Eduardo”.

Julia*, 28 anos, assistente administrativa

"Eu fui casada por 23 anos com um abusador. Hoje eu consigo chamar o Marcos* assim, mas foi um longo processo até aqui. Foram incontáveis abusos físicos, psicológicos e emocionais, além de estupros. Eu pensava que estava fazendo aquilo pelos meus filhos, mas ninguém deveria ter que passar por isso nunca, por motivo nenhum. Ele transava comigo, mas eu não transava com ele. Tinha noites que eu acordava com ele arrancando minha roupa e já me penetrando sem eu nem saber o que estava acontecendo, mas eu achava que era minha obrigação como mulher, só rezava para acabar rápido. Hoje sou advogada familiar e tento ajudar as minhas clientes, minhas mulheres, da forma que posso. Acho importantíssimo que a nova novela aborde esse assunto, que é tão corriqueiro e acontece em muitas casas. Na maioria das vezes, as mulheres sofrem caladas. Talvez com o exemplo da Clara, elas tenham forças para denunciar e saírem desse tipo de situação em que vivem. Porque, no fim das contas, é bom poder falar: ‘Eu vivi tudo aquilo, sim, mas superei’”.

Vanessa*, 53 anos, advogada

"Meu relacionamento era viver pedindo desculpas. No início do nosso namoro, o Luiz* era uma pessoa: carinhoso, educado, receptivo com a minha família e meus amigos. Eu tinha muito mais amigos que ele, aliás. Começamos a namorar e casamos 8 meses depois. Depois do casamento, a coisa mudou de figura e parecia que tudo que eu fazia era errado, poderia contar mil histórias aqui. Eu me divorciei há 2 anos e hoje estou sozinha e muito feliz. Assisti à novela e ver as cenas da Clara com o Gael me fizeram chorar muito, mas não só de tristeza. Óbvio que bateu uma angústia de lembrar de tudo aquilo, mas chorei também de felicidade de ter conseguido sair daquele relacionamento. Na terça à noite, mandei mensagem para minha mãe, alguns amigos e até para a moça que trabalhava em casa, que sempre me ajudava quando o Luiz tinha ataques de violência. Me sinto aliviada que já passou”.

Marcela*, 36 anos, dentista

*Todos os nomes da reportagem foram trocados para preservar as entrevistadas.

Estupro marital

Segundo o balanço do Ligue 180 de 2016, 65,91% dos casos de violência contra a mulher foram cometidos por homens com quem a vítima tem ou teve algum vínculo afetivo. De acordo com o relatório “Estupro no Brasil, Uma Radiografia Segundo Dados da Saúde”, divulgado pelo Ipea em 2014, 9,3% do abuso sexual sofrido por mulheres adultas são praticados pelo cônjuge e 1,6% pelo namorado.

Em entrevista recente ao UOL, Silvia Chakian, promotora de justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (GEVID), de São Paulo, afirmou que o problema ainda reside no senso comum de que “as mulheres têm o dever de servir aos homens sexualmente”. Apesar de inaceitável, isso foi reforçado pela lei até 2003, quando o código penal brasileiro tratava como “débito conjugal” a recusa feminina na hora do sexo. E isso bastava para que um homem pedisse separação por justa causa.

“É absurdo que isso ainda habite o pensamento popular. Uma relação afetiva não é um cheque em branco para que um parceiro pratique todo e qualquer ato sexual com a companheira. Se não há consentimento, não existe outro nome que não seja estupro”, disse ela na ocasião.