Topo

Documentário mostra saga de pais para importar maconha medicinal

Priscila Tieppo

Do UOL, em São Paulo

09/10/2014 07h15

Estreia quinta-feira (9), em 18 cidades do país, “Ilegal”, documentário sobre o uso da maconha medicinal no tratamento de doenças. Entre as pessoas retratadas no filme, três são crianças que usam o canabidiol ou CBD –um dos componentes da Cannabis Sativa, a planta da maconha– no controle de convulsões causadas por epilepsia refratária, que não responde aos medicamentos e tratamentos convencionais.

Tarso Araújo, um dos diretores do documentário e autor do livro “Almanaque das Drogas” (Editora Leya), afirma que o longa-metragem quer incentivar a conversa sobre a maconha medicinal. "O tema está sendo discutido e nada avança sem debate. É preciso transpor a barreira do preconceito."

  • 36245
  • true
  • http://mulher.uol.com.br/gravidez-e-filhos/enquetes/2014/10/08/voce-e-favoravel-as-pesquisas-com-maconha-medicinal-para-o-uso-em-criancas.js

Margarete Brito, 42 anos, é uma das mães que tem sua história mostrada em "Ilegal". A filha dela, Sofia, 5 anos, é portadora de CDKL5, uma síndrome sem cura com epilepsia de difícil controle, que pode causar convulsões diárias, mais de uma por dia. A advogada foi a primeira pessoa a importar o canabidiol de forma ilegal no Brasil.

“Não sabia se era ilegal ou não, queria ajudar a minha filha. O CBD surgiu como uma esperança depois que conhecemos o caso de uma criança americana que usava o produto e teve melhora na qualidade de vida”, diz.

A menina em questão é Charlotte Figi, 7,  usuária da substância –que nos Estados Unidos é tratada como suplemento alimentar e vendida legalmente. Charlotte apresentou diminuição nas crises convulsivas já nos primeiros meses de uso.

Margarete entrou em contato com a família de Charlotte, que lhe passou o e-mail da empresa farmacêutica que vendia o canabidiol e pediu uma amostra. Depois de 15 dias ministrando a substância, ela percebeu que a filha melhorou, mas decidiu interromper o tratamento. “Fiquei insegura porque não sabia nada sobre o CBD e não tinha com quem trocar informações”, fala.

Há cerca de 40 dias, Margarete voltou a dar o canabidiol para Sofia e percebeu que as crises convulsivas diminuíram. Antes, eram 58 crises por mês e agora são 13. “Vejo que ela sorri mais, interage mais. Além disso, consegui retirar os remédios anticonvulsivantes que a deixavam sonolenta, baqueada.”

Antes de testar o CBD, Sofia experimentou medicamentos controlados nacionais e importados e chegou a passar por uma cirurgia, medidas que, segundo a mãe, não resultaram em melhora do quadro.

Substância proibida

O canabidiol, por ser extraído da planta da maconha, é uma substância proscrita na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), ou seja, sua entrada no país é proibida.

Margarete consegue importá-lo graças a uma autorização especial emitida pela entidade mediante apresentação de documentação, que incluiu uma prescrição médica. Assim como ela, outros pais possuem essa autorização, mas muitos não conseguem porque os médicos não indicam o produto por medo de processo judicial ou por desconhecimento.

Em maio passado, a Anvisa tratou do tema em audiência pública, mas um dos diretores da agência pediu para revisar o processo, o que adiou a decisão sobre a inclusão do CBD na lista de medicamentos permitidos. Por meio de nota, o órgão informou que a questão será retomada nas próximas audiências, mas ainda não há data definida. Um dos pontos levantados pela Anvisa é o risco de, com o canabidiol, vir o THC, substância psicoativa da maconha que provoca efeito alucinógeno. O CBD sozinho não tem essa ação.

A agência tinha recebido até 3 de outubro 118 pedidos de autorização para importar o CBD, além de outros 13, que chegaram por demanda judicial. O canabidiol vem em apresentação pastosa ou aquosa. A dose para 25 dias custa US$ 500 (cerca de R$ 1.200). 

Processo judicial

A lei brasileira não permite a prescrição nem o uso de derivados da maconha, o que impossibilita legalmente o acesso de pacientes ao canabidiol. Quando uma pessoa importa sem autorização ou um médico prescreve a substância corre o risco de ser processado judicialmente e ser condenado de cinco a 15 anos de prisão.

Mas para Cid Vieira Souza Filho, advogado membro da Comissão de Estudos sobre Educação e Prevenção de Drogas e Afins da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em São Paulo, o que vai pesar é a avaliação do juiz.

“Em tese, tanto os pais quanto o médico podem ser processados por tráfico de drogas, mas não imagino que um juiz condene essas pessoas se elas estão prescrevendo ou importando por conta de um tratamento, para preservar vidas. Tudo vai depender da interpretação do juiz”, afirma.

O advogado diz que, em casos de urgência, a pessoa pode pedir uma liminar judicial para que a Anvisa libere a importação. “O processo normal costuma ser demorado, mas é possível pedir liminar antecipada. Se o paciente está correndo risco de morte, a decisão judicial costuma ser rápida.” A Anvisa informa que seguindo os procedimentos listados em seu site, a liberação costuma ocorrer dentro de uma semana.

O que diz a medicina

Em maio deste ano, aconteceu em São Paulo o 4º Simpósio Internacional da Cannabis Medicinal, promovido pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em que experiências com a planta foram relatadas. Margarete Brito, a primeira mãe a importar o CBD ilegalmente, deu o seu depoimento no evento.

Os debates são importantes para desmistificar o tema. Porém, mais do que eles, as pesquisas são fundamentais, dizem os especialistas.

A primeira pesquisa –e única– feita no Brasil sobre o canabidiol aconteceu na década de 1980. “Há relatos de que é eficaz para o tratamento da epilepsia. O primeiro estudo mostrou melhora em adultos que usaram a substância em comparação com outros que tomaram placebo”, declara Laura Guilhoto, chefe do ambulatório infantil da Unidade de Pesquisa e Epilepsia da Unifesp, que também participou do simpósio.

Para se tornar um medicamento produzido no país, segundo Laura, o canabidiol terá de passar por um processo lento e que deve durar, no mínimo, dez anos. “Não ser liberado aqui no Brasil emperra a pesquisa farmacêutica e a clínica, que demoram, mas que são necessárias para garantia daquilo que está se prescrevendo. Além disso, é preciso lidar com o preconceito que há por ser derivado da maconha. Tem de ter um estudo mais amplo, mais elucidativo. É uma luz no fim do túnel para quem tem esse tipo de epilepsia, a refratária.”

O CFM (Conselho Federal de Medicina) se coloca a favor da pesquisa. “Existem substâncias na Cannabis Sativa que têm propriedades medicinais. Em relação a essas, somos favoráveis à pesquisa, ao isolamento do princípio ativo e a liberação para as doenças passíveis de tratamentos com elas”, diz Emmanuel Fortes, coordenador da Câmara Técnica de Psiquiatria do CFM.

Em nota, o conselho afirma ainda que, em relação aos médicos, “a entidade não vê impeditivo na prescrição e aguarda a avaliação final dos estudos [com a maconha medicinal] para conceder uma posição oficial”. O assunto, segundo a assessoria de imprensa da entidade, está previsto para as próximas plenárias do CFM.

Pais trocam informações

Margarete Brito, que hoje preside a Appepi (Associação de Pais de Pessoas com Epilepsia de Difícil Controle), afirma que o interesse das pessoas aumentou depois que ela participou com outros pais, também da associação, da Marcha da Maconha, em maio, no Rio de Janeiro, onde mora. “É fundamental que haja pesquisa. Tem tanta gente precisando disso, tanto pai passando perrengue por causa das convulsões dos filhos. É como diz o slogan da associação: a vida não espera.”

Um dos pais interessados no tema, após conhecer os casos de Margarete e de Katiele Fischer, de Brasília –que ficou famosa por ser a primeira a ter permissão judicial para importar o canabidiol–, é o médico oncologista mineiro Leandro Ramires, 50, pai de Benício, 6, portador da síndrome de Dravet (um tipo de epilepsia refratária, sem cura).

“Com cinco meses de uso do canabidiol, meu filho melhorou radicalmente. Antes, ele tinha cinco ou seis convulsões por dia e hoje são 12, bem leves, por mês. Além disso, ele tem autismo e já consegue interagir com as pessoas, emite sons, consegue mostrar quando tem fome, quando tem sono. É uma outra vida.”

Oitenta por cento das crianças que têm Dravet, segundo o médico, morrem na primeira infância por conta das convulsões graves. “Quando alguém me pergunta se eu não tenho medo do efeito do CBD no futuro, respondo: se for esperar, não vai ter futuro.” O único efeito colateral, segundo Ramires, é o filho sentir mais sono.

O caminho entre a ilegalidade e a esperança para pais de crianças que sofrem diariamente com convulsões está na pesquisa e no interesse público. “Vejo esse cenário de discussão com muito otimismo. Queremos trabalhar com universidades e institutos que pesquisem a planta e dar informação para as pessoas. A batalha é longa, mas vale a pena”, afirma Margarete Brito.