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Brasil contraria ONU e não divulga dados sobre feminicídios no país

A fisioterapeuta Tássia Mirella, vítima de feminicídio - Reprodução/Facebook
A fisioterapeuta Tássia Mirella, vítima de feminicídio Imagem: Reprodução/Facebook

Marcos Candido

Do UOL, em São Paulo

14/10/2017 04h00

Em abril deste ano, a fisioterapeuta Tássia Mirella chegava ao flat onde morava, em frente à praia de Boa Viagem, no Recife, quando foi atacada. No dia seguinte, seu corpo foi encontrado por um funcionário do prédio - estava nua e com um corte no pescoço. A perícia revelou que ela havia sido estuprada antes de morrer. A polícia acredita que o crime tenha sido cometido por um vizinho.

Assassinatos como esse, além de estarrecedores, possuem um agravante: o feminicídio. Desde 2015, o Código Penal define que feminicídio é o homicídio doloso (com a intenção de matar) cometido contra mulheres e motivado por violência doméstica, familiar, menosprezo ou discriminação ao gênero feminino. A pena para um homicídio simples varia de 6 a 20 anos de detenção, enquanto o feminicídio impõe de 12 a 30 anos.

A Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda que crimes de ódio contra a mulher sejam mapeados e divulgados periodicamente. Segundo a instituição, o procedimento auxilia em investigações e ajuda a criar políticas públicas de segurança de acordo com os perfis das regiões. Apesar disso, um levantamento feito pelo UOL mostra que a maioria dos estados brasileiros ainda não faz isso.

A reportagem checou os relatórios de criminalidade disponibilizados na internet pelos 26 estados e Distrito Federal, como já se é feito para crimes como homicídios dolosos, latrocínios e mortes causadas por policiais durante ocorrências. Apenas cinco estados divulgam números que fazem a distinção entre homicídio doloso e suspeita de feminicídio em seus relatórios.

Brasil é o quinto país que mais mata mulheres

Segundo o Mapa da Violência 2015, o Brasil tem a quinta maior taxa de assassinatos de mulheres do mundo. Entre 1980 e 2013, mais de 100 mil brasileiras foram mortas apenas por serem mulher, aponta esse estudo. Mesmo assim, faltam dados que façam a distinção aos feminicídios.

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Na região sudeste, entre janeiro e agosto deste ano, 41 casos foram registrados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) fluminense. Somente no estado de São Paulo, entre janeiro e agosto deste ano, pelo menos 63 mulheres foram mortas por seus companheiros. O recorde de casos se deu em agosto, quando 12 assassinatos foram registrados no Estado - apesar disso, as estatísticas trazem apenas o número de homicídios dolosos contra mulheres. O Espírito Santo divulga estatísticas de violência contra mulheres na rede, mas não especifica quais estão sob suspeita de feminicídio. Até 30 de agosto, um levantamento da Universidade Federal do Espirito Santo detectou 84 casos de crimes de ódio contra mulheres.

A região centro oeste é onde há mais estados com dados específicos. De janeiro ao fim de agosto, Goiás registrou 13 crimes suspeitos de serem feminicídios. No ano passado, foram 16. Mato Grosso do Sul registrou 22 crimes sob suspeitas de feminicídio de janeiro a outubro deste ano - em 2016, foram 34 casos.

O Distrito Federal também mantém base mensal: entre janeiro e junho de 2017, 9 suspeitas foram registrados no DF, contra 19 de janeiro a dezembro de 2016. Mato Grosso não mantém dados abertos para acompanhamento mensal.

Na região sul, Rio Grande do Sul registrou 40 suspeitas desse tipo de crime de janeiro a junho de 2017 e 96 casos em 2016. O levantamento do estado gaúcho, que mapeia feminicídios desde 2012, mostra que 463 deles foram consumados no estado de 2012 a 2016. Santa Catarina e Paraná não divulgam dados mensais na rede.

No norte, Pará, Amapá, Roraima e Rondônia não publicam dados sobre feminicídio na rede. Segundo levantamento a partir de números do Ministério da Saúde de 2015, Ananindeua, no Pará, com uma taxa de 21,9 mortes de mulheres a cada 100 mil habitantes, é considerada a cidade mais perigosa para as mulheres no país.

O governo do Amazonas, por meio da assessoria de imprensa, informa que 12 suspeitas no estado em 2016, e também 12 entre janeiro a agosto de 2017. O estado também não divulga os crimes pela rede.

Caso Tássia Mirella: "crime passional" agora é "feminicídio"

No nordeste, onde a fisioterapeuta Tássia Mirella foi morta, nenhum dos nove estados mantém um banco de dados abertos para consultas sobre feminicídio. Em Pernambuco, 21.125 mulheres foram vítimas de agressões domésticas entre janeiro a agosto deste ano, segundo a secretaria de defesa social do estado. Apenas com os dados publicados periodicamente, não se pode afirmar quantos destes episódios podem ter resultado em morte.

O Piauí, apesar de contar com um núcleo especial para investigação de crimes de ódio contra a mulher, também não liberou o mês a mês ao público e não respondeu à reportagem. Os demais nove estados da região também não apresentaram números ou mantém dados online. Na maioria dos estados, dados sobre feminicídio só podem ser adquiridos por meio de Lei de Acesso à Informação (LAI), o que pode levar até trinta dias para o atendimento.

Os familiares de Tássia Mirella, auxiliados por ativistas feministas, protestaram em defesa de aplicação mais rígida da lei do feminicídio em Pernambuco. Como resposta, o governo estadual publicou um decreto para substituir o termo "crime passional" por "feminicídio" em boletins de ocorrência no estado.
O termo "crime passional", apesar de não previsto no Código Penal, é usado no tribunal por advogados para diminuir a pena, alegando crimes cometidos por ciúmes ou adultério, explica a professora de Direito na Universidade Federal do Espírito Santo Brunela Vincenzi. A estudiosa também diz que há boletins que, apesar da descrição do caso, são classificados como homicídio simples. A falta de registro prejudica a agilidade para se obter os dados, uma vez que os B.Os registrados pela Polícia Civil costumam ser usados em estatísticas criminais.
Brunela avalia que ainda falta sensibilidade para aplicar a lei de 2015. "O Brasil ainda é patriarcalista, de considerar pecado determinado atos das mulheres". A professora destaca ainda o impacto da lei na luta pelos direitos da mulher:
A lei do feminicídio muda uma tradição histórica e uma mentalidade na formação jurídica com mais de 200 anos

Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público, órgão que faz levantamento do feminicídio a partir de denúncias e investigações a nível nacional, 947 inquéritos de feminicídios foram abertos de março 2016 a março de 2017 em todo país.

Perfil do feminicida

Segundo a promotora Valéria Scarance, do laboratório de Gênero do Ministério Público de São Paulo, o crime de feminicídio é cometido por familiares em 80% dos casos. "São os maridos, por exemplo. O homem feminicida é bastante violento: usa martelos, barras de ferro, madeira, socos, chutes". Ela também cita crimes como estupro ou sequestro seguido de morte.

Para Wânia Pasinato, socióloga no escritório da USP Mulheres e uma das criadoras das diretrizes nacionais para a aplicação da lei do feminicídio, é importante diferenciar o agravante das demais mortes intencionais. "[Com dados periódicos] o estado pode operar contra esse tipo específico de violência. Não só mostrar o quantitativo, mas também aprofundar outras características e conseguir elaborar políticas públicas contra violência a mulher de forma preventiva", defende.

Outro lado

As secretarias de Sergipe e Alagoas afirmam que só as investigações podem definir crime de feminicídio. As secretarias, porém, não informaram se possuem algum levantamento específico. São Paulo afirma que só divulga o número de homicídios dolosos contra mulheres, e que prefere aguardar as investigações. Para se ter acesso ao número de mulheres mortas no estado é preciso checar cada boletim de ocorrência, ou pedia via Lei de Acesso à Informação.

A reportagem não conseguiu entrar em contato com os governos de Rondônia, Piauí. Os demais estados que não publicam dados, não responderam à reportagem.

Em nota, o Distrito Federal, que distingue feminicídios de homicídios dolosos, afirma usar os dados para "elaborar estratégias de atuação tanto pelas forças de segurança, como por outros órgãos de governo, para combater diretamente este crime" e afirma que mulheres que enfrentam violência doméstica e familiar podem recorrer a qualquer unidade da Rede de Proteção à Mulher do Distrito Federal.