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Nos EUA, construtor solitário cria "mundo paralelo" em meio a floresta

A Garden House, a residência atual de SunRay Kelley,é uma das sete casas da propriedade do construtor - Randy Harris/ The New York Times
A Garden House, a residência atual de SunRay Kelley,é uma das sete casas da propriedade do construtor Imagem: Randy Harris/ The New York Times

Michael Tortorello

The New York Times, em Sedro-Wooley, Washington (EUA)

24/05/2013 07h01

Dê a um homem alguns hectares e uma semana na floresta e ele começará a planejar seu castelo. 

Entretanto, é uma alma incomum aquela que constrói sete casas, dez lagos, uma choupana de ermitão, uma estátua do Cristo com cinco metros de altura entalhada em um tronco de bordo e um estúdio de ioga cuja entrada, esculpida e acabada em cor-de-rosa, lembra (com precisão anatômica) a genitália feminina. 
 
O senhor destas terras é um contestador descalço, de 60 anos, chamado SunRay Kelley. E seu fantástico complexo feito à mão se encontra no final de uma estrada de terra que leva o nome de seu avô, ao pé das colinas Cascade Range, ao norte de Seattle. 
 
A melhor maneira de descobrir o trabalho de SunRay Kelley (imagine um hippie trovador) é fazendo uma peregrinação. Um visitante frequente é o escritor Lloyd Kahn, cujo livro crucial sobre arquitetura vernacular dos anos 1970, “Shelter”, é um baluarte do estilo de Kelley. 
 
“Foi meio que uma odisseia”, afirma Kahn em um telefonema dado da casa por ele construída em Bolinas, na Califórnia. “Kelley é realmente um artista. Ele não lida com os detalhes do mundo real de maneira tão encantadora”. 
 
Kelley deve ter construído cerca de 50 estruturas quiméricas pelo continente, desde esquisitos palácios folclóricos a cabanas de Smurfs. Mas o construtor prefere permanecer no que chama de “A Propriedade” por dias ou semanas a fio. No lugar, o artista está livre para transformar discos de arado de trator em antenas cósmicas e levar para dentro de casa lenha que sussurra suas intenções. 
 
Ouvindo a natureza, quebrando o corpo
 
“Quando Kelley diz que ouve a natureza, acredito que ele realmente ouça”, pondera Kahn. “Ele deve ser o mais importante construtor que se utiliza de materiais naturais. Não há ninguém como ele, em nenhum lugar”. 

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  • Tony Cenicola/ The New York Times
 
Em uma manhã de sábado recente, Kelley perambulava no jardim enquanto fumava um paliativo de ervas do tamanho de um charuto. Ele se auto-medica deste modo algumas vezes por dia, como por exemplo quando está acordado e não tem comida na boca. 
 
Ao longo dos anos, o artista já caiu de alguns telhados, quebrando o tornozelo e os dois pés. Seu quadril tem sérios problemas. Misteriosamente, ele adquiriu uma marca na testa, uma ferida que secreta líquido periodicamente ao longo do dia.  
 
Na primavera, Kelley contou, estava em cima de uma escada, ajustando o tamanho das tábuas de cedro no telhado. De repente, a motosserra pegou na membrana de borracha do telhado e “tum! Veio com tudo na minha cabeça”, recorda.  
 
Sua narina direita abriu como uma aba de barraca. “Não é a experiência mais agradável que alguém pode ter”, continua. Ele esfregou um pedaço da pele que também foi cortada perto da sobrancelha. “Esse acidente mudou bastante a geografia desta região”, constata. 
 
Ao longo de uma vida, Kelley transformou a paisagem do seu terreno de 3,6 hectares. E a paisagem, invariavelmente, também o transformou. Nos anos 1920, seu avô estabeleceu uma propriedade arborizada com pouco mais de 2,5 km², na base da Montanha Cultus, e abriu uma fábrica de telhas de cedro. Depois, seu pai cuidou de algumas dúzias de cabeças de gado em uma pequena parte das terras. Kelley não tinha vocação para nenhuma das duas coisas. 
 
 “O planeta é uma floresta, é um jardim”, ele filosofa. “Eu não gostava de ter que construir cercas ou correr atrás do gado. Você não precisa correr atrás disso…”, e se estica para pegar uma maçã de uma das 200 árvores que ele mesmo plantou. 
 
A umidade de inverno produziu décadas de musgo nos troncos contorcidos, quase humanos. A madrasta da Branca de Neve não conseguiria criar uma árvore que tivesse características mais fantásticas e malévolas. Mas o próprio Kelley possui um estilo de conto de fadas com sua constituição atarracada, “dreadlocks” brancos e barba cheia.  
 
Sua companheira há oito anos, Bonnie Howard, professora e empreiteira, conseguiu aparar sua cabeleira uma única vez. “Quando fomos construir na Costa Rica”, ela relembra.
 
Natureza e engenharia
 
A parte favorita da propriedade fica na base de uma colina lamacenta, do outro lado do que Howard chama de “ponte Billy Goat Gruff” [NT: trata-se de um conto de fadas sobre três bodes que tem que atravessar uma ponte, onde vive um “troll”, para conseguir comida]. A base de tal ponte foi feita a partir de um chassi de caminhão antigo. 
 
“Esta é uma floresta que cresceu pela segunda vez”, informa Kelley ao adentrar a mata densa e profunda, apontando em direção a alguns cedros muito altos. “Essas árvores tinham 40 anos de idade quando as vi pela primeira vez. E elas só foram ficando cada vez maiores e mais mágicas”, diz.
 
Os velhos tocos são ainda mais imensos. Kelley empoleirou a pequena construção redonda que ele chama de “Cabana do Ermitão” em cima de um deles. “Este tem pelo menos mil anos de idade”, calcula. “Não se consegue uma fundação que dure muito mais tempo que essa”, completa. 
 
Mas dentro do garoto amante da natureza vive um fanático por mecânica, o construtor confessa. Seu caminhão de entregas é um Diamond T - 1947 que ele mesmo reconstruiu. Frequentemente, ele dirige até a cidade em um triciclo com assento reclinável que ele equipou com motor elétrico e frenagem regenerativa. Kelley afirma já ter testado este veículo com velocidades superiores a 80 km/h. 

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  • Sara Essex Bradley/The New York Times
 
“Ao andar tão perto do chão, você enxerga o pavimento como se fosse uma lixa gigante passando. Se cair, não vai sobrar muita pele”, ele atesta. (E você pode encomendar uma bicicleta igual a dele, se tiver coragem).  
 
O seu próprio motor é ligado todo dia, o dia todo, brinca Howard, de 50 anos. “Ele é um compulsivo, ele é um construtor compulsivo.”
 
Kelley segue morro acima em direção a um abrigo primitivo. Alguns anos atrás, o filho de Howard, Eli Erpenbach, que hoje tem 16 anos, construiu um pequeno forte com galhos caídos no chão da floresta. O arquiteto da casa no toco escavado ali perto foi o neto de 11 anos. “Estes são os humildes primeiros passos de um construtor”, avalia com olhos de aprovação. “Foi exatamente o que eu fiz quando criança, nesta floresta. Acho que nunca mais parei”, conclui.
 
Sua(s) casa(s), seu mundo
 
Em um momento ou outro, Kelley viveu em quase todas as habitações da propriedade. Primeiro veio a Casa da Terra (“Earth House”), em 1976, onde o construtor moldou quatro mãos de bronze para segurar as vigas do telhado. Depois, se mudou para o andar de cima de uma oficina, num apartamento que ele chama de “O Pio”, cujas espinhas de madeira desgastada não pareceriam estranhas em Winterfell [NT: Região Norte dos Sete Reinos de Westeros, da obra “As Crônicas de Gelo e Fogo”, de George R. R. Martin].
 
Em 1998, Kelley saiu de onde pode ter sido sua melhor casa, a Casa do Céu (“Sky House”), e sob muito protesto, lembrou uma residente de longa data da propriedade.“Eu o coloquei pra fora”, conta Judy, ex-esposa de Kelley. Por acaso, ela apareceu com seu novo marido para colher algumas maçãs e parou para conversar.
 
Viver com Kelley foi uma aventura e um tormento, revela Judy. “Sempre havia uma variedade interessante de visitantes: pessoas de circo, artistas, yogis, gurus… E por quanto tempo estes convidados ficavam? Até que terminassem de comer tudo o que a gente tinha”, relembra. “Saímos um dia e quando voltamos, eles tinham comido tudo – inclusive as galinhas”.
 
Judy ainda vive no lugar e aluga seu antigo estúdio de yoga. Ele esculpiu as dobras onduladas ao redor da entrada durante sua primeira paixão por uma mistura de terra, palha e água.  A ex-mulher também aluga a Casa do Céu, uma maravilha de quatro andares que lembra uma igreja campestre russa. Nesta construção a ornamentação também se mostra extremamente imaginativa. As vigas de conexão se projetam da linha do telhado como uma presa de baleia narval.
 
“Eu gosto de deixá-los para fora mesmo estando podres”, Kelley revela. “Não é uma boa ideia.”
 
A verdade é que construtor nunca foi refém da praticidade, como sua ex-mulher diz: “Nunca nada estava terminado. Nunca. Isso me deixava louca”. O aquecimento também foi um problema, na medida em que não havia muito com o que contar. “Uma coisa que eu tenho que dizer sobre o Ray é que ele não sabe construir um sistema de aquecimento”, afirma Judy.

Homem entalha a própria casa
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  • John Burcham/The New York Times
 
Kelley rebate: “Não é verdade. Venha à minha casa agora”. Judy não estava propensa a aceitar a oferta. “Às vezes eu até chorava, era muito frio,” lamenta a mulher. E, enfim, Kelley admite: “Tivemos alguns anos frios”. A aspereza dela pareceu diminuir, então ela colocou seu braço em volta dele. “Mas nossos filhos se tornaram calorosos. Eles dificilmente ficavam doentes”.
 
Uma casa e um jardim
 
Kelley começou a construir sua atual residência, a Casa do Jardim (“Garden House”), em um estilo criado para um fim. Ele precisava de um lugar para dormir. Mas isso não é muito diferente do seu método usual. “ Eu pratico o que chamo de ‘arquitetura evolucionária’, o que significa que você faz planos, mas se uma ideia melhor aparece amanhã você está disposto a mudar o planejamento”.
 
E, por 15 anos, até o último verão, os planos não incluíam armários ou iluminação moderna. “Eu nunca fui um grande fã de luzes elétricas”, Kelley reconhece. “Tenho olhos de gato. E eu emito luz suficiente com o meu corpo”.
 
Muitos dos projetos atuais de Kelley são construções modulares que podem custar algo entre módicos US$ 15 mil e US$ 20 mil dólares, variando caso a caso. Você raramente precisa de uma permissão de construção ou hipoteca para fazer um abrigo habitável de 19 m² ou uma sauna com um forno de pizza conversível.
 
Kelley consegue preparar um abrigo como esse em sua oficina, entregá-lo e montá-lo em uma ou duas semanas. Nessa conjuntura, os clientes estão livres para finalizar a casa onde quiserem e Kelley está livre para ir. “Quando se constrói uma casa para alguém, é necessário ouvir o desejo dos clientes”, afirma. “Isto pode ser muito desafiador”.
 
Kelley concluiu algumas encomendas exaustivas, incluindo o Templo de Harbin Hot Springs, ao norte de Napa Valley. Esta maravilha tem um vão livre de 15 metros no centro e barras que sobem em espiral, em direção a uma radiante claraboia e a uma cúpula.
 
Com o seu quadril falhando, Kelley recentemente começou a pensar em como poupar suas forças. “Eu não tenho mais a capacidade que tinha aos 30 e 40 anos,” pondera. “É duro. Você quer ver seu trabalho evoluindo, vê-lo melhorando”.
 
Porém, só a manutenção da propriedade já é uma tarefa incessante. Uma árvore está começando a brotar do telhado musgoso da Casa da Terra. E espinheiros de rosa selvagem estão invadindo as escadas da Casa Raiz. “Eu quero que dure para sempre”, Kelley  "reza" ao olhar para suas construções. “Mas a verdade é que tudo tem o seu tempo. Tudo vai ser tornar adubo”.
 
Seu rosto se iluminou de repente, quando ele olhou para o balcão. O folhado de maçã estava fora do forno e Howard tinha cortado e colocado num prato um quarto dele. Kelley lança sua mais recente cigarrilha, ainda acesa, numa tigela de salada com sua erva medicinal, que passa a arder em fogo lento.
 
 “SunRay sempre começa com a sobremesa,” enuncia Howard. O construtor concorda com sua companheira e afunda a mão nua numa montanha de maçãs mornas. “Você nunca sabe quando a sua bolha irá estourar,” reflete Kelley. “Mas sabe que vai estourar. Eu vou comer minha sobremesa antes de ir”.