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Com 2 bilhões de habitantes, Facebook virou imensa reunião de condomínio

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Imagem: Getty Images

No mês passado o Facebook atingiu 2 bilhões de usuários. Isso significa que dois em cada sete habitantes do Planeta estão conectados à plataforma de Mark Zuckerberg, a mais usada para receber e compartilhar informações em um momento em que boa parte dos consumidores de notícias se informam por redes sociais.

Nos círculos sociais (os da vida real) é difícil encontrar quem não tenha uma conta no Facebook. A resistência tem um ar de exotismo. Basta não ter perfil nenhum nas redes para se tornar o esquisitão da turma.

Ainda assim, nunca ouvi tantos relatos de gente disposta a abandonar ou levar a rede menos a sério. Os motivos são variados. Dispersão. Overdose de informação. Cansaço de brigar por assuntos diversos. Ansiedade com as inúmeras mensagens apocalípticas visualizadas aos montes em uma mera rolagem de barra.

Alguns vão e voltam, só para tomar um ar. Outros permanecem sob argumentos também variados: é a forma de manter contatos com amigos distantes; é o espaço para divulgar meu trabalho; é a forma de saber o que acontece no mundo; é o mal necessário, enfim.

Dia desses, em conversa com um amigo disposto a encerrar a conta e voltar a se comunicar por cartas, telefonemas ou sinais de fumaça, esbocei uma psicologia de botequim para explicar o mal-estar. Nosso cérebro não está preparado para absorver o número de informação contido numa mesma linha do tempo. Não consegue virar a chave entre assuntos tão diversos. E, querendo ou não, passou a ser exposto a episódios traumáticos antes filtrados por veículos de imprensa ou pelo limite da presença física onde hoje proliferam câmeras para registros e rápida divulgação.

Por exemplo: não estávamos na catraca do metrô Pedro II, em São Paulo, quando um homem foi agredido brutalmente até a morte por dois covardes na véspera de Natal. Ou quando um jovem acusado de roubo, teve a testa tatuada num ato gravado, divulgado, aplaudido. Conectados, nos tornamos todos testemunhas dos episódios, e compartilhamos não só a indignação, como também a sensação de que o mundo, fora da nossa bolha de mensagens motivadoras, está perdido.

Antigamente uma única foto de crianças correndo em disparada entre o desespero de bombardeios na Guerra do Vietnã era suficiente para levar a opinião pública a dimensionar a gravidade do conflito. A exposição era, sobretudo, um catalisador de revoltas. Hoje esses testemunhos pipocam à medida que se banalizam, despotencializam e levam à desistência, como uma soma zero de vetores de indignação.

Nosso desânimo com a vida em rede pode ter relação com esse estresse, um estresse pré ou pós traumático de quem passou a ser receptor e emissor das notícias ruins em tempo integral e não tem ideia por onde começar as mudanças diante de tanto estrago.

Em outras palavras, o espaço de compartilhamento deixa de ser, se é que um dia foi, um espaço para reunir afinidades, canalizar forças, divulgar boas histórias, boas músicas. Um espaço de esperança e engajamento, enfim. Em épocas de crise, ficamos expostos o tempo todo ao que as pessoas, mesmo as que costumávamos admirar, têm de pior. E acabamos mostrando também o nosso lado mais afetado, mais intolerante e mais antidemocrático, muitas vezes demonstrado nas opções de bloqueio a quem nos incomoda.

Meu amigo ouviu com atenção, mas achou minha hipótese exagerada. Para ele o mundo sempre foi isso aí, e um bom exemplo da nossa falência eram as reuniões presenciais de condomínio. A questão, defende ele, é mais matemática do que existencial: o Facebook, aos poucos, se tornou a reunião de todos os condomínios que formamos ao longo da vida. Da rua onde morávamos. Dos amigos do maternal. Dos amigos do colégio. Da faculdade. Do trabalho. Do futebol. Da academia. Da família.

Bem, prossegue ele. Toda turma tem, na melhor das hipóteses, um chato. Tem o sujeito que quer falar de trabalho depois do expediente; o garganta que quer contar feitos, do carro adquirido às investidas afetivas; o solitário meloso que imagina entender de poesia; a sabichona disposta a ensinar o tempo todo a lidar com nossos filhos (uma conhecida esses dias fez uma análise da escada da minha sala, onde nunca entrou, para me alertar da morte iminente de todos em casa); os testemunhos da volta do Senhor; os engajados em provar que a Terra é plana; o colega que, não importa o que você diga, terá sempre feito mais, melhor ou pior; o revoltadão online que só descobriu a política depois de 2013; o desconhecido que te marca na postagem com algum famosinho de internet para demonstrar intimidade; o parente sem noção; o brigão lacrador cheio de frases-feitas pra passar vergonha; os campeões em tudo de quem já falava Fernando Pessoa; os sommeliers da dor alheia ("você lamenta a morte do menino rico, mas esquece o sofrimento das tartarugas malaias"); os anúncios diários de roubo ou furto de celular de quem a gente nunca liga ou escreve; as manifestações públicas de carências privadas (meu amigo diz se admirar com a capacidade das pessoas homenagearam alguém em público falando apenas delas mesmas).

Em tempo de polarização, nada pode dar mais preguiça do que ver os amigos se matarem por quem uma hora dessas organiza um grande acordo nacional, com Supremo, com tudo, para salvar a própria pele. "Aperte 97 e confirma, seus burros"; "Cadê os coxinhas agora?"; "Onde está seu Deus?". Isso sem contar as manifestações gratuitas de homofobia e discursos de ódio congêneres.

O Facebook é a possibilidade real de todos os chatos entrarem em contato com a gente ao mesmo tempo, e isso, segundo meu amigo, é motivo suficiente para viver aprisionado a um pânico permanente ao menor sinal de notificação.

É mais ou menos como uma propaganda de empreendimento imobiliário para você e toda a família - um empreendimento, agora, de 2 bilhões de habitantes. O verde, a área gourmet, o sorriso, as crianças brincando felizes no parque: não tem encanto no folder do anúncio que resista à primeira reunião de condomínio, aquela prova irrefutável de que é impossível chegar a qualquer acordo aos berros.

O Facebook é isso. Uma grande reunião de condôminos dispostos a mover a terceira guerra pela melhor vaga na garagem.

Em tempo. Escrever, costumo dizer, não é a pretensão de elaborar respostas, mas de dividir o peso das perguntas. E eu tenho muitas desde que comecei a escrever e compartilhar ideias há quase 15 anos, quando dei início aos estudos de jornalismo e ciências sociais. Antigamente a gente escrevia para ser lido; hoje, para iniciar conversas, expandir ideias, reavaliar posições e desconstruir problemas. É o que tenho tentado fazer desde que me peguei escrevendo sobre assuntos diversos, de política a futebol, passando por cinema e comportamento, em veículos como Folha de S.Paulo, iG, CartaCapital, Yahoo e The Intercept Brasil. Passo a compartilhar por aqui, no UOL Estilo, textos (gosto de chamar de crônicas) sobre comportamento, experiências e, principalmente, dúvidas - sobretudo de como manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo em uma época marcada por conexões, superinformação, mudanças e, sobretudo, velocidade das mudanças. Que seja uma boa estadia.