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Por que querem um mundo "livre" de crianças?

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Imagem: Getty Images

Eu quase não ando de carro. Onde não posso ir a pé, vou de bicicleta; se a distância é longa, uso transporte público. Cuido de bichos e das plantas de casa. Não tenho o hábito de jogar objetos no chão – uma vez, um pouco alterado pela bebedeira no carnaval, deixei cair meu copo plástico na cachoeira do clube da nossa cidade, Araraquara, e tenho pesadelos recorrentes com isso até hoje. Separo lixo orgânico dos recicláveis e até cápsulas de café e garrafas pet tenho evitado comprar. Por conta do trabalho, fiz o possível para acompanhar os debates sobre a Cop21, a conferência do clima de Paris, que definiu os esforços das grandes potências para conter o avanço da temperatura média do Planeta. Tento fazer minha parte economizando energia elétrica e boicotando candidatos que neguem o aquecimento global. Não sou americano e não votei em Donald Trump.

Ainda assim, descobri, no fim de semana, que estou do lado errado da luta pela conservação ambiental por um motivo até então desconhecido: eu tive um filho.

Foi o que me alertaram, numa dessas discussões insolúveis de Facebook, quando compartilhei o post do amigo Silvio Pedrosa, professor de História no Rio de Janeiro que reclamava do recrudescimento dos discursos de ódio e segregação contra crianças. Disse ele: “Esse papo de ‘childfree’ e ‘odeio crianças’ me parece se fundar numa questão muito simples: vive-se cada vez mais numa sociedade de pessoas encantadas com a própria imagem - a ponto de se trabalhar incessantemente no polimento dessa construção do ‘eu’ - e cuja meta (inclusive educacional) é ‘aumentar o protagonismo’. A contradição é evidente: não há espaço para um papel fundamental para a cooperação social, a capacidade de ser coadjuvante na vida alheia. E ser pai ou mãe é exatamente isso: o longo, difícil e sacrificante aprendizado dessa arte de equilibrar uma vida autônoma sobre a sua própria vida, ou seja, estar preparado para se retirar aos bastidores sempre que chega a hora”.

Reflexão pertinente, não? Pois pouco depois recebi o alerta de que os esforços de uma vida ecologicamente responsável presentes nos pequenos atos (dirigir menos, construir janelas, trocar lâmpadas) renderiam uma economia de 486 toneladas de gás carbônico na atmosfera durante a minha passagem pela Terra. Não ter filhos, por sua vez, renderia 9.441 toneladas a menos – e o mundo então seria um ótimo lugar para se viver quando não tivesse mais ninguém por aqui.

Ninguém, vírgula, me alertou o responsável por me apresentar ao grupo Extinção Voluntária da Humanidade (Voluntary Human Extinction Movement, na sigla em inglês), uma comunidade de mais ou menos 6 mil integrantes engajados em campanhas com slogans do tipo “Obrigado por não se reproduzir” (Malthus, que previu a catástrofe humana em caso de aumento populacional em proporção geométrica, deve sorrir orgulhoso, esteja onde estiver).

O debate sobre “childfree” é mais complexo do que parece. Como pai de uma criança de quatro anos, não me lembro de ter em algum momento dito a alguém que ter filhos é parte de um plano romantizado da vida que inclui a plenitude, a felicidade em estado bruto e a satisfação garantida. Se alguém está em busca de plenitude, felicidade e satisfação garantida é melhor comprar uma TV de 50 polegadas com acesso a internet. Sai mais barato, vale dizer.

A escolha por não ter filhos é perfeitamente compreensível no contexto contemporâneo, de divisão de tarefas domésticas ainda distorcidas e investimentos em outros planos fora da vida familiar, sobretudo profissionais. As relações afetivas, inclusive, podem ser mais interessantes quando não preveem apenas a reprodução da espécie ou a satisfação de uma demanda religiosa ou social.

Mas daí a ouvir que meu filho, os filhos dos meus primos ou os filhos dos vizinhos não são bem-vindos em determinados espaços vai uma distância imensa. Não falo de casas noturnas, agências bancárias ou vidraçarias; falo de restaurantes, supermercados, ônibus intermunicipais e hall de hotéis, onde caminhar com crianças, estes seres sem idade suficiente para incorporar a etiqueta de um mundo que não quer ser incomodado, equivale a andar de mãos dadas com extraterrestres.

Mas os olhares a gente encara e passa em frente – um pouco envergonhado pela manha recorrente, às vezes acompanhada de choro e esperneio quando não compramos algo nos pedem, mas o jogo segue. O problema é quando a segregação vira demanda por um suposto direito.

Em seu blog “Para Beatriz”, referência para quem tem filhos e vive tropeçando em dúvidas e questionamentos, Isabela Kanupp relata sua incursão em comunidades do tipo “childfree” do Brasil nas quais predominam discursos ofensivos não só contra crianças (chamadas, não poucas vezes, de “catarrentas” e coisa assim) como também às mães, numa sobreposição de conceitos confusos entre a liberdade ambicionada, a desinformação e o reforço de estigmas.

Segundo a autora, ser “childfree” não deveria ter relação com o ódio a crianças, mas sim com não querer ser mãe – o que, reforço, é perfeitamente compreensível num mundo de violências e assimetrias tão latentes como o nosso.

O que não parece compreensível é discurso de segregação de espaço, como se já não tivéssemos muros e restrições suficientes em cidades fundadas na ideia de que apenas alguns têm o direito à circulação, o que equivale a ter direito a ser gente (crianças, pasmem, são gente, e o fato de não gostar delas não dá o direito de não conviver com elas nos pontos de contato dessas cidades). Uma coisa é não querer ter filhos; outra, não querer conviver com os filhos dos outros (e com os outros, consequentemente).

Não consigo imaginar medidas de restrição de convívio, mesmo em espaços privados, como uma ideia de liberdade. Visualizo apenas uma medida autoritária, típica da descrição do meu amigo sobre nossa incapacidade à cooperação social.

Quanto aos argumentos sobre o impacto ambiental de uma nova pessoa na nave-mãe (essa que queremos deixar um pouco mais humana, menos cínica e intolerante, para as próximas gerações de organismos vivos), fico com a definição de outro amigo ao saber que uma multidão anda por aí discutindo a extinção voluntária da humanidade, a construção de um mundo feito por adultos só para adultos ou desmascarando o conceito de Terra redonda: não importa o quão estranha é a sua ideia, a internet mostra que você não é o único a acreditar nela.