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"Eu não aguentei o tranco de namorar uma pessoa trans"

Getty Images
Imagem: Getty Images

Para quem não é íntimo do assunto, é difícil falar sobre a transição de gênero de alguém. Sai de tudo: "A pessoa virou trans", "A pessoa virou mulher", "A pessoa mudou de sexo". As palavras mudam, mas a ideia de que a pessoa passou por uma grande transformação permanece.

-- “Você é meu homem!”
-- “Eu sou, eu sou teu homem. E você é o quê?”
-- “Eu sou sua mulher.”

Leonardo e André moravam comigo, na mesma república e na mesma falta de grana. Formavam um casal bonito e desinibido. Os dois trocavam amassos na lavanderia quando escutei esse diálogo. Não dei muita atenção. Cada um com suas fantasias...

André fazia uma linha mais heteronormativa: ativo convicto (fazia questão que todos soubessem disso), futebol com os amigos, cavalinho de pau com o carro na rua; Leonardo era mais ousado: tentava a carreira de cabeleireiro (com o patrocínio de André para fazer os cursos), afeminado, voz e gestos delicados.

Quando íamos ao supermercado, Leonardo ia direto para a seção de vestuário e calçava os saltos mais altos que podia encontrar no seu número. Fazíamos as compras com ele desfilando orgulhoso, cuidando para nenhum segurança da loja ver.

Na hora de ir embora, os sapatos voltavam para a estante. André parecia fazer esforço para não se importar.Às vezes, entrava na brincadeira e botava um salto também, e andava desajeitado pelo supermercado, exagerando na macheza. Falava grosso, tirava sarro, ria. Outras vezes, baixava a cabeça e pedia para o Leonardo focar nas compras. Nem sempre isso funcionava.

A primeira grande briga dos dois foi quando Leonardo apareceu em casa com um aplique imenso nos cabelos, até a cintura. “É por causa do meu trabalho”, gritava Leonardo.

“Você parece uma mulher!”, retrucava André. Nunca vi o Leonardo tão triste quanto no dia que apareceu em casa com o cabelo curto novamente, resignado.

Perdi o contato com os dois, até o dia que encontrei um rosto conhecido ao caminhar por uma praça da cidade. “Leonar...da?”,  perguntei, surpreso.

Ela estava toda arrumada. Saia curta de couro, um decote imenso, botas de salto alto muito mais bonitas que as do supermercado, o cabelo impecável e comprido novamente.

“Oi”, ela disse, com um sorriso tímido, e continuou andando, com pressa e sem mais nenhuma palavra. A praça era um famoso ponto de prostituição da cidade. Algo que me diz que ela não conseguiu seguir carreira sem a ajuda de André.

Ainda assim, ela me pareceu bem mais confortável consigo mesma. Encontrei André no Facebook e tentei sondar a situação: “Sim, agora a Leonarda está vivendo como mulher”, ele respondeu, sério e seco.

Ele me confidenciou que não se importava com as expressões femininas de Leonarda enquanto elas ficavam no quarto. Leonarda também tentava ceder o quanto podia, mas as diferenças foram ficando maiores e maiores.

“Você sabe como é ruim chupar o pinto de alguém que tem pavor que encostem ali?”, me disse. Mesmo com tudo isso, seu amor só balançou mesmo quando Leonarda resolveu abrir sua transexualidade publicamente.

“Eu tentei, Flávio, eu tentei assumi-la, mas eu não consegui. Eu gosto de homem”, disse ele, com um tom de voz que soava culpado.

Leonarda não saía de minha cabeça. Tentei procurar e contatá-la de todas as maneiras possíveis para entrevistá-la para este texto, mas não tive sucesso. Lembro do seu rosto na rua, entre o orgulho de poder viver com a expressão de gênero com que se identifica e uma triste e solitária resignação.

Certamente Leonarda pagou o preço mais alto nesse rompimento, mas André também sofreu.

Como julgar alguém que deixa de amar uma pessoa que não exibe mais o gênero com se identificava quando se conheceram? Ainda mais André, que brigou tanto com sua família religiosa para poder viver sua homossexualidade?

Ainda assim, sua vida saiu muito mais intacta do que a de Leonarda. Depois desse relacionamento, André namorou com outro garoto, que depois também revelou ser uma mulher transexual. Ficou um tempo sem namorar com ninguém.

Hoje, está em um novo relacionamento. Dessa vez, com um homem trans. Por amor, claro, mas talvez para ter um pouco de certeza de que as escolhas ali já foram tomadas. Talvez ele não queira ser pego de surpresa por mais uma pessoa que muda tão drasticamente no meio de um relacionamento.

Mas, honestamente, quem não muda?

*Flávio Voight é psicólogo.