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Tratar a homossexualidade é como tratar alguém por não ter uma 3ª perna

Flávio Voight: A ideia de um tratamento psicoterápico que "conduza" uma pessoa a ser ou a deixar de ser homossexual é ridícula --o que não quer dizer que ela já não tenha sido tentada. - Ariel Schalit/AP
Flávio Voight: A ideia de um tratamento psicoterápico que "conduza" uma pessoa a ser ou a deixar de ser homossexual é ridícula --o que não quer dizer que ela já não tenha sido tentada. Imagem: Ariel Schalit/AP

Uma liminar do juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, liberou a atuação dos psicólogos para terapias de reversão sexual, isso é, tratar a homossexualidade como uma doença e usar métodos que tentem "curá-la". O juiz demonstra um profundo desconhecimento da atuação do psicólogo no âmbito da sexualidade. Conheço essa área dos dois lados.

Aos 16 anos de idade, assumi minha homossexualidade para meus pais. Muito religiosos, eles insistiram muito comigo --de Bíblia na mão-- sobre como esse era um ato repulsivo para Deus e que eu precisava abandonar essas atitudes. Sem saber o que fazer, me levaram a uma psicóloga.

Lá, aos poucos, fui falando sobre mim, minhas angústias e meus medos, sem julgamentos. Não me sentia julgado quando falava que queria deixar de ser gay e não me sentia julgado quando falava que queria viver minha sexualidade plenamente.

Nunca, em momento algum do tratamento, foi feito qualquer comentário a respeito de eu evitar ou assumir a minha sexualidade. Tudo o que era tratado nas sessões era baseado no que eu dizia sobre meus sentimentos e vontades no momento, sem nenhuma sugestão da psicóloga sobre qual rumo tomar.

Hoje, vários anos depois, sou eu que ocupo a cadeira do psicólogo.

E é bem dessa forma que são tratadas, rotineiramente, as pessoas que procuram um psicólogo para tratar de sua homossexualidade: elas falam sobre suas angústias e decidem, elas próprias, quais suas ações para lidar com isso.

É essa a lógica da maior parte das linhas terapêuticas que levam em conta a existência de um inconsciente: deixar que a pessoa fale e decida o seu rumo terapêutico, enquanto o terapeuta apenas facilita que ela se escute, com perguntas e pontuações sutis.

Por isso mesmo a ideia de um tratamento psicoterápico que “conduza” uma pessoa a ser ou a deixar de ser homossexual é ridícula --o que não quer dizer que ela já não tenha sido tentada.

O livro agrega artigos e técnicas que tratam de um suposto  “Homossexual Não-Gay”, ou seja, um homem que não se identifica com o comportamento da comunidade homossexual e, por isso, deseja deixar de sê-lo. É exatamente esse tipo de terapia que a liminar da Justiça Federal permite.

O livro agrega artigos e técnicas que tratam de um suposto  “Homossexual Não-Gay”, ou seja, um homem que não se identifica com o comportamento da comunidade homossexual e, por isso, deseja deixar de sê-lo. É exatamente esse tipo de terapia que a Bancada Evangélica e alguns profissionais no Brasil desejam legalizar, e o tipo de terapia que, sem consultar o Conselho Federal de Psicologia, um Juiz Federal do Distrito Federal concedeu liminar permitindo que seja praticado.

O livro de Nicolosi vai direto ao ponto e generaliza homossexuais como pessoas que não conviveram com homens o suficiente na infância, e atribui a homossexualidade a essa fraca relação com o mundo masculino.

A proposta terapêutica começa incentivando-os a buscar companhias masculinas para “perder o medo” da presença masculina e buscar masculinizar a pessoa, ignorando a grande quantidade de homossexuais que vive em meios essencialmente masculinos, sem ter sua sexualidade afetada por essa convivência.

Nicolosi também incentiva o homossexual a encontrar um mentor para que se controle o “vício”, o que pode criar uma relação de julgamento intenso e culpa quando o comportamento natural da sexualidade se manifestar, o que todo psicólogo sabe que pode facilitar o surgimento ondas de promiscuidade intensa quando se “cai no erro” novamente, por causa da sensação de fracasso.

A repressão corre solta. A técnica recomenda conter os impulsos sexuais por se afastar de qualquer exposição a conteúdo erótico ou pornográfico, e tratar dos seus desejos naturais como expressões de raiva e medo.

Mesmo com todo este trabalho, o livro reconhece que o trabalho de “deixar de ser gay” é um processo para toda a vida e que é necessário ter muita cautela e fé para fazê-lo.

É possível, com técnicas assim, afastar-se do comportamento homossexual? Sim, é possível. É possível fazê-lo sem um grande grau de sofrimento e repressão? Dificilmente. É possível deixar de ser homossexual, a nível de desejo? Não. Não existe ex-gay.

Por isso é incabível que os psicólogos usem especificamente de técnicas repressivas e violentas, que prejudicam o bem estar dos seus pacientes, apenas porque este acredita que se conformar às expectativas da sociedade vá lhe fazer bem.

Se um comportamento é natural, não compulsivo e não afeta a vida de nenhuma outra pessoa além de seu praticante, não há nenhuma necessidade de considerá-lo uma doença. Ainda mais se, ao considerar o homossexual um doente, se provoca mais sofrimento, violência e culpa do que ao deixá-lo viver naturalmente e em paz.

Pedir a um psicólogo para realizar um tratamento de conversão sexual é como pedir um médico para tratar de uma pessoa por não ter uma terceira perna: é desnecessário, inútil e impossível.

Cabe aos profissionais da psicologia lutarem para ter sua profissão respeitada e com autonomia. Não é da alçada de um juiz decidir que tipo de terapia funciona ou não. Não é invenção nossa que a homossexualidade é um comportamento natural do ser humano e que merece ser tratada como apenas uma manifestação da ampla e diversa sexualidade humana. Chegamos a essa conclusão com ciência, método, pesquisa.

Não é papel da psicologia formatar o ser humano em uma perspectiva fechada e com medo da diferença. Nosso papel é promover a saúde mental das pessoas, e é muito, muito mais saudável quem é livre. E, veja só, quem tem saúde mental não precisa se meter na vida sexual dos outros.


*Flávio Voight é psicólogo