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'Cortei meus pulsos porque não tinha opção': o drama das meninas obrigadas a se casar

Shafa tem apenas 16 anos, mas já sofreu um casamento forçado e um aborto involuntário - BBC
Shafa tem apenas 16 anos, mas já sofreu um casamento forçado e um aborto involuntário Imagem: BBC

22/06/2017 17h49

No Sri Lanka, a idade legal mínima para casamento é 18 anos. Mas uma antiga lei local permite que meninas muçulmanas sejam uma exceção a essa regra, apesar de muitas pessoas no país serem contra isso. A jornalista da BBC Saroj Pathirana conversou com uma jovem obrigada a se casar nesse esquema.

Quando Shafa (nome fictício) tinha 15 anos, foi obrigada a se casar. "Enquanto estudava para uma prova, me apaixonei por um menino", diz, com lágrimas nos olhos.

"Meus pais não gostaram e me mandaram para a casa do meu tio. Enquanto eu estudava lá, um homem que frequentava a casa disse a eles que queria se casar comigo."

Shafa, que vem de uma família muçulmana e vive em uma aldeia remota do Sri Lanka, se negou. Ela queria se casar com o jovem que amava depois que terminasse seus estudos.

Mas apesar de sua resistência, seus tios organizaram seu casamento com o amigo da família. Sempre que se manifestava contra a união, apanhava. Os tios também ameaçavam se matar se ela continuasse se negando.

"Cortei os pulsos porque não tinha outra opção", conta Shafa, levantando as mangas para mostrar as cicatrizes. "Também tomei algumas pílulas."

Shafa é muçulmana e vive em uma pequena aldeia no Sri Lanka, onde o casamento infantil é recorrente - BBC - BBC
Shafa é muçulmana e vive em uma pequena aldeia no Sri Lanka, onde o casamento infantil é recorrente
Imagem: BBC

"Enquanto eu estava no hospital, subornaram os médicos e me levaram a um hospital privado. Alguns dias depois, me obrigaram a casar com esse homem."

Vítima de violência

Como não tinha outra saída, Shafa decidiu ficar com seu novo marido, mas ele suspeitava que ela mantivesse a relação com o antigo namorado. "Ele me batia frequentemente."

"Quando disse a ele que estava grávida, ele me ergueu e me atirou no chão. Em seguida me disse que só me queria por uma noite, que já tinha me usado e não precisava mais de mim", disse.

No hospital, ela descobriu que havia perdido o bebê como resultado da violência. Mas quando foi à polícia, não levaram a sério sua denúncia. Um dia, foi chamada para a mesquita do vilarejo. Ali, seu marido disse que queria manter o casamento, mas ela se opôs.

Dias mais tarde, Shafa começou a receber ligações e mensagens de texto de estranhos que perguntavam quanto ela cobrava para dormir com eles. Ela descobriu que seu marido havia publicado sua foto e seu número de celular nas redes sociais.

A mãe de Shafa tenta manter a família unida e busca ajuda para sua filha - BBC - BBC
A mãe de Shafa tenta manter a família unida e busca ajuda para sua filha
Imagem: BBC

Nas ligações, os homens a ameaçavam com uma linguagem vulgar e diziam que conseguiram o número "graças a seu marido". "Eu gravei todas as chamadas e ainda tenho as mensagens de texto", conta Shafa, sem deixar de chorar, mas ainda assim determinada a contar sua história.

Ajuda psicológica

O pai de Shafa não quis se envolver no que estava acontecendo. Mas a mãe levou a filha a um centro de bem-estar social para que ela recebesse ajuda psicológica e legal após a experiência traumática do casamento.

As duas vão ao centro em segredo - a busca por ajuda psicológica ainda é um tabu no Sri Lanka. A mãe de Shafa mantém seus cinco filhos trabalhando todos os dias no vilarejo. Foi expulsa de sua cidade natal pelos rebeldes separatistas Tigres Tamiles em 1990.

"Mandei minha filha para a casa do meu irmão por causa de um incidente, nunca pensei que ela passaria por isso", diz. Ela diz que se opôs ao casamento forçado, mas seu irmão não a ouviu.

"Agora eu temo por sua segurança e educação (por causa das mentiras que seu marido espalhou sobre ela). Ela não pode ir ao colégio nem andar de ônibus. Seu futuro é incerto", diz a mãe.

Pressão real

Todo ano, centenas de jovens como Shafa, que pertencem à minoria muçulmana do Sri Lanka, são obrigadas a se casar por pressão de pais ou tutores. Segundo a advogada de direitos humanos Ermiza Tegal, os casamentos de meninas muçulmanas aumentaram de 14% para 22% em um ano, uma alta atribuída a uma tendência conservadora.

Shafa tinha 15 anos quando foi obrigada a casar, mas grupos de apoio a mulheres muçulmanas acompanharam casos de meninas de 12 anos que sofreram o mesmo. As leis do Sri Lanka proíbem o casamento de menores de idade. Para se casar é preciso ter ao menos 18 anos.

Mas um regulamento mais antigo chamado Lei de Casamento e Divórcio Muçulmano (MMDA) dá permissão aos líderes da comunidade muçulmana, que são homens em sua maioria, de decidir a idade do casamento.

Não há uma idade mínima, ainda que um casamento com uma menina com menos de 12 anos demande uma permissão especial de uma autoridade islâmica.

As meninas e suas mães têm sofrido em silêncio durante décadas, mas agora ativistas muçulmanas estão exigindo uma reforma da MMDA, apesar das ameaçadas dos líderes da comunidade conservadora.

Reforma

Como o Sri Lanka planeja reformar sua Constituição, ativistas acreditam que esta seja a hora de agir. A ONU e a União Europeia também pediram ao governo que mudasse a MMDA e outras leis discriminatórias.

Mas não há muita esperança, já que um comitê criado pelo governo há quase 10 anos para analisar a reforma da MMDA não conseguiu formular propostas concretas. Grupos muçulmanos como Jamiyathul Ulama e Thawheed Jamaath resistiram durante muito tempo aos pedidos de mudança.

O tesoureiro da Thawheed Jamaath, BM Arshad, disse que a organização sempre apoia a reforma da MMDA quando as propostas surgem de dentro da comunidade, mas se negou a estabelecer uma idade mínima para os casamentos.

"Nem o Islã nem a Thawheed Jamaath aceitam o casamento infantil", diz Arshad. "Mas a Thawheed Jamaath jamais aceitará fixar uma idade mínima para o casamento." "Algumas meninas não têm que se casar inclusive depois dos 18 anos. É direito da pessoa que se casa decidir quando fazê-lo", diz.

Arshad negou as acusações de que sua organização ameaça ativistas muçulmanas.

'Não destruam a infância dessas meninas'

O centro que recebe Shafa e sua mãe já ajudou mais de 3 mil mulheres muçulmanas com diferentes problemas nos últimos três anos, incluindo 250 vítimas de casamento infantil. "Tenho que ficar longe de casa por causa das ameaças de homens", diz a assistente social que dirige o centro. "Tenho medo de levar meus filhos à escola."

A ativista Shreen Abdul Saroor, da Rede de Mulheres em Ação (WAN, na sigla em inglês), é uma das poucas mulheres muçulmanas que ousa revelar seu rosto e sua identidade. "O casamento infantil é uma violação à lei", diz.

Ela insiste que 18 anos deve ser a idade legal do casamento para todas as comunidades no Sri Lanka, independentemente de nacionalidade e religião. Uma menina não é fisicamente madura o suficiente para dar à luz outra criança, diz a ativista.

"Quando vemos todas essas meninas casando, isso afeta toda a comunidade. A sociedade retrocede", acrescenta. "A minha mensagem à comunidade muçulmana e aos líderes religiosos é: por favor, não destruam a infância dessas meninas."

Determinação

Apesar do trauma, Shafa sempre foi uma aluna brilhante e está decidida a voltar a estudar. Sua família espera que a jovem consiga um bom emprego, mas ela ainda enfrenta muitos desafios. "Os homens se aproximam e fazem piadas grosseiras quando vou a aulas particulares", diz.

"É um assédio grave, eu me sinto desanimada, indefesa, não sei o que fazer." Mas ela se nega a deixar os assediadores vencerem. Seu objetivo é se tornar advogada. "É porque você quer ajudar outras vítimas como você?", pergunto. "Sim", responde ela, enquanto nosso olhar se cruza e sinto sua determinação.