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Por que futebol ainda é esporte "só para homem" no Brasil?

Seleção Brasileira de Futebol Feminino - Divulgação
Seleção Brasileira de Futebol Feminino Imagem: Divulgação

Renata Mendonça

23/10/2017 16h57

Isabella sempre quis jogar futebol na escola, mas só a vontade nunca foi suficiente. Precisava passar pelo crivo dos meninos antes de entrar na quadra: ela pedia para jogar, eles faziam uma rodinha para debater se deixariam ou não. Muitas vezes, Isa tinha que se contentar em ficar só assistindo.

Já Ana Luiza insistia até que os meninos cedessem - se vinham com o papo de que "ali não entrava menina", ela não arredava o pé da quadra. Só que entrar no jogo não significava estar no jogo, e Ana amargou um tempo sem conseguir tocar na bola, pois eles não a passavam para ela. Até que a menina provou sua habilidade e virou presença constante no futebol do bairro - e também nome constante nas fofocas dali ("Menina-macho, aquela ali vai ser sapatão com certeza").

A história de Juliana foi um pouco diferente. Os meninos conheciam sua habilidade e, todo dia, tocavam a campainha de sua casa para chamá-la para o futebol. Mas a mãe não gostava muito da ideia e, para impedir a menina de jogar, passou a delegar para ela as tarefas da casa. "Você só vai descer depois que lavar a louça", dizia.

Com a ajuda do irmão mais velho - que também queria jogar com ela -, Juliana acabava o serviço rapidinho e logo ia para a rua. No dia seguinte, a mãe insistia. "Agora vai ter que lavar a louça e varrer o chão" - e a parceria com o irmão se repetia. "Hoje é a cozinha toda." Até que a mãe desistiu. E Juliana se tornou Ju Cabral, a capitã da primeira medalha de prata do Brasil no futebol feminino na Olimpíada de Atenas (2004).

Isabella sempre quis jogar futebol na escola, mas tinha que pedir autorização para os meninos - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Isabella sempre quis jogar futebol na escola, mas tinha que pedir autorização para os meninos
Imagem: Arquivo Pessoal

No caso de uma menina de Dois Riachos (AL), teve tudo isso e um pouco mais. Quando chegou para disputar o campeonato da região com os meninos, acabou barrada: não deixaram inscrever uma menina. Hoje, ela é Marta, cinco vezes eleita a melhor jogadora de futebol do mundo.

Toda menina que já jogou - ou tentou jogar - bola já vivenciou uma das situações acima. No Brasil, que é conhecido por ser "o país do futebol", as mulheres chegaram até mesmo a serem proibidas por lei de participarem do jogo. Por quase 40 anos - de 1941 a 1979 -, se elas fossem vistas jogando futebol, poderiam ser levadas para a delegacia.

"Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o CND baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país", determinava o Decreto-Lei 3.199 do Conselho Nacional de Desportos (CND) que proibiu mulheres de praticarem o futebol, entre outras modalidades.

Histórico

A justificativa para a proibição teve até embasamento científico, segundo Silvana Goellner, pesquisadora de gênero e educação física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Teve um parecer médico na época que colocava as mulheres no espaço da fragilidade e sobretudo da maternidade - a missão de toda a mulher na época era ser a mãe do futuro da pátria", explica à BBC Brasil.

Futebol jogado por mulheres era apresentado como espetáculo de circo - Arquivo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro - Arquivo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Futebol jogado por mulheres era apresentado como espetáculo de circo
Imagem: Arquivo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

"Afirma-se que a 2ª delegacia auxiliar está decidida a acabar de vez com o futebol feminino... Para isso, serão fechados todos os clubes dessa especialidade. Está aí uma notícia magnífica. O futebol feminino, como esporte, é desaconselhável e, como passatempo, perigoso e nocivo", dizia a nota do jornal Diário de Notícias Esportivo, do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1941.

A proibição não significou o fim da prática do futebol por mulheres no Brasil, mas a tornou invisível na história.

"A despeito da proibição, as mulheres continuaram fazendo. Só que não podiam ser registradas suas conquistas, elas não poderiam aparecer oficialmente nos registros das federações. Isso deu uma invisibilidade na história das mulheres no esporte. Elas estavam, mas não aparecem. Só que o silêncio não significa ausência", afirma Goellner, que foi responsável por garimpar a história do futebol feminino no Brasil para inseri-la em 2015 no Museu do Futebol, que fica no estádio do Pacaembu, em São Paulo.

As poucas notícias sobre futebol feminino eram casos de polícia ou proibição - Arquivo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro - Arquivo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
As poucas notícias sobre futebol feminino eram casos de polícia ou proibição
Imagem: Arquivo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

"Nós achamos algumas coisas em notícias do futebol feminino (sendo citado) como espetáculo de circo, algumas coisas de delegacia de polícia, casos em que a polícia chegou para encerrar um jogo de futebol. Mas, principalmente, a gente só conseguiu mapear informações por causa das jogadoras", conta.

"Os clubes não têm registros, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) não tem registro. A presença da mulher no futebol é anulada, como se ela não existisse. E aí anula também o desejo de quem quer se inserir no futebol. Se as meninas não têm em quem se inspirar, fica difícil".

Por tudo isso, não se sabe exatamente quando o futebol feminino começou a existir no Brasil. O registro mais recorrente sobre a primeira partida noticiada na imprensa é de 1921, entre as equipes de Tremembé e do Cantareiras (bairros de São Paulo). Mas a modalidade só foi regulamentada oficialmente em 1983 - quatro anos depois de ter caído o decreto-lei que proibia a prática. "Esse decreto só vai cair no fim dos anos 1970, por força das mulheres", conta Goellner.

A proibição não significou o fim da prática do futebol por mulheres no Brasil, mas a tornou invisível na história - Arquivo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro - Arquivo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
A proibição não significou o fim da prática do futebol por mulheres no Brasil, mas a tornou invisível na história
Imagem: Arquivo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

O que mudou?

A proibição do futebol feminino caiu, mas não acabou com a resistência à modalidade.

Na escola Edem, do Rio de Janeiro, a quadra era chamada "dos meninos", já que eram só eles que reinavam ali. Quando as meninas pediam para jogar junto, eles diziam: "isso não é para menina. Vocês deveriam ser líderes de torcida". Até que um dia, há dois anos, elas se revoltaram e invadiram o local aos gritos de "Poder Feminino". Esse foi o início daquele que seria o time de futebol das garotas.

Mas uma vez juntos dentro de quadra, era nítida a diferença de habilidade entre os meninos e as meninas que hoje estão na sexta série. Em uma tentativa de "altinha" entre os melhores amigos Arthur e Catarina, ele se exibia fazendo embaixadinhas, enquanto ela não conseguia levantar a bola do chão.

"Eles treinam toda hora, não dá para comparar", diz a menina. Arthur concorda: "Eu jogo desde os 3 anos, treino quatro vezes por semana". Catarina começou a jogar aos 9, e não treina em nenhum lugar fora da escola.

Garotas do colégio Edem - BBC Brasil - BBC Brasil
Garotas do colégio Edem
Imagem: BBC Brasil

Esse, aliás, é outro problema levantado pelas meninas do colégio: não há turmas de futebol só para meninas. "É muito chato jogar com os meninos, eles não passam a bola pra gente", afirma Isadora.

A escolinha do time francês Paris Saint-Germain na Barra da Tijuca, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, é uma das poucas que conseguiu abrir uma turma só com meninas. São 15 as que fazem parte do time - o número de meninos matriculados chega a 300.

"Ainda são poucas, mas a procura tem aumentado. Conseguimos abrir uma turma só de meninas agora. Mas todas as que nos procuram já têm nível intermediário, são meninas que já jogam. Nunca recebemos nenhuma menina iniciante, para aprender mesmo", explica Rodrigo Pian, um dos técnicos da escolinha do PSG.

"As meninas são mais fáceis de treinar, elas ouvem, são mais focadas. Mas elas não são educadas para ter esse sonho - de ser jogadora de futebol", pontua.

Professora da Faculdade de Educação Física e Esporte da USP, Katia Rubio explica que esse é um dos fatores que ainda afastam as garotas do esporte: enquanto os meninos são presenteados com uma bola logo cedo, elas ganham apenas bonecas.

"Os meninos, quando nascem, na porta da maternidade já está a bola de futebol ou a chuteira. Diferentemente da menina, que tem que provar o direito dela da prática do futebol. Os meninos já ganharam esse direito desde o momento que nasceram", pontua.

Segundo o Diagnóstico Nacional do Esporte, divulgado após estudo do Ministério do Esporte em 2013, 41,6% dos meninos começa a praticar esportes entre os 6 e 10 anos - enquanto só 29% das meninas inicia a prática nessa idade.

Além disso, elas têm dificuldade de ocupar espaços públicos. Segundo a pesquisa Meninas Fortes, realizada pela agência 65/10 em parceria com a marca Nescau, 50% das meninas de 8 a 11 anos associam a rua a perigo.

Para a pesquisadora Silvana Goellner, o fato é que a proibição caiu na lei, mas segue existindo na prática. "Os espaços públicos são ocupados por meninos. Hoje há uma proibição simbólica, ela ainda existe. É uma violência simbólica".

"O que mudou de lá para cá foi a maior participação das mulheres - aumentou a resiliência delas. A despeito de todas essas precariedades, elas não desistiram do futebol".

E se antes o argumento para proibir o futebol foi baseado na "fragilidade do seu corpo", hoje a base desse discurso se mantém como argumento para mantê-las longe da bola.

"A diferença é que hoje o argumento é usado como fim estético. O contato do esporte, do futebol, não é bom para a menina porque vai fazê-la perder sua 'feminilidade'", explica Goellner.

Esse, aliás, é um dos comentários que Gabriela, do time Poder Feminino da escola Edem, mais ouve quando diz que gosta de jogar futebol: "Vai ficar parecendo um menino", conta. Mas a menina de 12 anos não se intimida: "Ser feminina é ser o que você é, não o que as pessoas pensam".

Visibilidade

O sonho de Juliana Cabral de se tornar jogadora de futebol não veio do nada. Ela se lembra exatamente do dia em que soube que era isso que queria fazer da vida. "Quando eu vi aquelas meninas na Olimpíada de Atlanta (1996), meu sonho era ser como elas. Não tinha nada que me fizesse voltar atrás", conta a ex-atleta, que tinha 15 anos na época e viu na TV a estreia do futebol feminino em Jogos Olímpicos.

Por isso, Juliana acredita que para mudar a ideia de que "futebol é só para homem", é preciso dar mais visibilidade ao futebol praticado por mulheres. "O meu sonho se concretizou na minha cabeça quando eu consegui ter exemplos femininos - aquela Olimpíada foi um marco. Eu tinha certeza que queria ser aquelas meninas".

Segundo pesquisa da Organização Gênero e Número, 97% da cobertura esportiva é focada em esportes masculinos - restam 3% para as mulheres.

"A visibilidade apareceu agora por causa da Olimpíada, mas é isso e só. Aqui no Rio Grande do Sul tem 16 equipes competindo o estadual (feminino), e não sai uma notícia. O Internacional fez uma peneira para categorias de base e 700 meninas apareceram para fazer o teste. Então há uma demanda reprimida aí. E a invisibilidade da mulher no futebol permanece", afirma Goellner.

Outro ponto necessário para mudar o cenário, segundo a professora Katia Rubio, é a união das mulheres para alterar a estrutura de poder do futebol.

Hoje, a CBF não tem nenhuma mulher atuando na gestão do futebol feminino. No ano passado, Emily Lima se tornou a primeira a comandar uma seleção brasileira principal, mas foi demitida dez meses depois - a entidade agumentou "falta de resultados" para a decisão.

"No âmbito do poder, não tem qualquer participação feminina, o que reduz ainda mais as possibilidades das mulheres se aproximarem da prática. Enquanto a estrutura de poder estiver na mãos de homens, eles dominam", afirma Rubio.

"Ninguém quer a mulher no esporte, então os discursos vão sendo construídos e renovados para validar o argumento de que ela não deve estar ali. Mas quando tiver uma geração empoderada pelo conhecimento, não tem argumento que resista".