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'Tenho câncer e ninguém me contrata': o homem que criou aplicativo para recolocar doentes crônicos no mercado

21/12/2017 19h56

David Shutts tinha uma carreira bem-sucedida: um comandante da Marinha que se tornou empresário no Reino Unido. Mas isso foi antes de ele ser diagnosticado com câncer. Shutts logo percebeu que seus empregadores não veriam mais utilidade em seu trabalho -- e essa frustração o fez pensar em como os talentos das pessoas com doenças crônicas poderiam ser mais bem aproveitados.

A doença começou a dar sinais com uma dor na lombar. O sintoma não foi suficiente para preocupar o médico e acabou ignorado sob o diagnóstico de uma lesão muscular qualquer. Assim, David continuou levando a vida como sempre, cumprindo os prazos no trabalho e garantindo uma vida social ativa. Mas aquela dor não ia embora - e em dois anos, a dor ficou constante, acompanhada por grande perda de peso sem explicação e noites suadas em que ele acordava de manhã transpirando muito.

"Eu era um cara jovem", ele diz, explicando por que demorou tanto tempo para fazer exames. "Fui levando e só quando eu não conseguia operar o cortador de grama por causa da dor que minha mulher me obrigou a ir ao médico."

Ele foi fazer a tomografia e, quando o diagnóstico finalmente veio, 10 dias depois do seu 50º aniversário, foi um baque: um tumor no seu rim esquerdo havia se espalhado pelos gânglios linfáticos, pulmões e ossos. O estágio era avançadíssimo, incurável, inoperável e o deixou parecendo, como ele mesmo descreveu, "uma bomba-relógio".

"Você sabe que com 50 anos e esse nível avançado de câncer você não vai viver até os 100, e nada vai ser mais a mesma coisa", disse ele. Na verdade, pessoas com esse diagnóstico não têm expectativa de vida de mais de cinco anos e, dependendo das circunstâncias, podem morrer em seis meses.

"Acabou que eu tinha todos os sinais de câncer no rim, mas não soube reconhecer. Existe um motivo pelo qual ele é chamado 'silencioso', porque você não percebe os sinais, é difícil de diagnosticar e tende a ser encontrado apenas quando você está investigando outros problemas."

Shutts tem a confiança e a energia que você espera de um homem acostumado a comandar uma equipe gigante em alto-mar. Com 16 anos, ele deixou 1.500 concorrentes para trás para fazer um curso de aprendiz de engenharia na Marinha. Depois, foi subindo no ranking até assumir a direção do HMS Daring, o navio de guerra mais poderoso daquele tempo.

Era seu emprego dos sonhos, mas em 2009, quando Shutts tinha 45 anos, ele estava pronto para um novo desafio. Então, aceitou um emprego em uma empresa de logística marinha e depois mudou para a Confederação Britânica da Indústria (CBI) para trabalhar como diretor regional.

Mas o diagnóstico de câncer mudou tudo. Por seis meses, Shutts fez tratamento com remédios e radioterapia que o deixaram com uma sensação frequente de exaustão.

Quando estava bem o suficiente para voltar ao trabalho, ele negociou de trabalhar um dia por semana na CBI. Só que Shutts tinha contas para pagar, então precisava de mais do que isso. Algo mais flexível que ele pudesse conciliar com sua vida de tratamento da doença.

Uma carreira interrompida

Não demorou muito para que Shutts entendesse que suas opções haviam diminuído drasticamente - e que sua vida profissional estava chegando ao fim. Esse foi o maior golpe de todos para ele. "Foi o momento em que eu perdi o chão", disse.

"Eu sou uma pessoa confiante, no geral, mas minha autoestima foi por água abaixo. Eu era um engenheiro, um homem bem-sucedido, e de repente eu não era mais nada, apenas alguém com câncer que era ignorado, sem lugar para trabalhar, sem ter a quem recorrer".

"Foi aí que eu entendi o verdadeiro valor do trabalho e o quanto ele nos oferece em termos de autoestima e interação social", afirmou.

O problema não foi apenas a falta de dinheiro, mas também a ausência do convívio com as pessoas. 

A tristeza se transformou em raiva quando ele pensou nas milhões de pessoas que, como ele, estavam agora em casa desperdiçando seus talentos e sua experiência, simplesmente porque não podiam se comprometer com empregos em tempo integral.

Pensando nisso, Shutts começou a desenvolver uma ideia sobre como aproveitar o talento das pessoas com doenças crônicas.

Talentos desperdiçados

Uma em cada duas pessoas nascidas depois de 1960 no Reino Unido serão diagnosticadas com algum tipo de câncer durante a vida, de acordo com a Pesquisa do Câncer feita no país. Cerca de 100 mil pessoas em idade ainda ativa são diagnosticada com câncer todo ano e, em 2015, segundo uma pesquisa da Macmillan Cancer Support, 1.019 pessoas vivendo com câncer tiveram que abandonar o trabalho ou os estudos ou mudar de função após terem recebido o diagnóstico.

O grupo de talentos desperdiçados aumenta ainda mais quando são consideradas outras doenças, como cardíacas, doenças neurais, artrite reumatóide, e pessoas que sofreram derrame ou têm problemas de saúde mental.

Recorrendo à sua agenda de contatos, Shutts se reencontrou com um antigo colega da Marinha, Simon Short, que agora era chefe de desenvolvimento de uma empresa de computação, a Salesforce. Foi numa conversa com ele que surgiu o conceito da Astriid, uma ferramenta online que conecta pessoas com negócios que podem aproveitar seus talentos para serviços pagos ou voluntários.

Pessoas procurando emprego criam seus perfis no aplicativo descrevendo suas habilidades e quando podem trabalhar. Os empregadores listam os empregos que têm disponíveis - e aí a Astriid conecta um com o outro.

A primeira conexão aconteceu entre uma mulher, que se recuperava de um câncer de ovário, e uma empresa de tecnologia que buscava uma palestrante inspiradora para um programa de liderança.

Há empresas que estão procurando por alguém que entenda de contabilidade, outras que querem alguém para gerenciamento de arquivo, outra para um engenheiro de comunicações.

Nenhum desses empregos são em tempo integral - esse não é o objetivo da Astriid. São serviços que pessoas conseguem fazer quando estão se sentindo bem o suficiente. Ajuda se o horário for flexível. Mas Shutts já aprendeu por experiência própria que a pessoa que está buscando um trabalho também precisa mostrar certa flexibilidade.

"Não dá para falar 'sou um engenheiro e só posso fazer trabalhos de engenheiro'. Precisa estar aberto a outras oportunidades. Então, de certa forma, é um jeito de se reformular para o mercado usando essa tecnologia", explicou.

Enquanto uma equipe de 70 empregados da Salesforce estava desenvolvendo o Astriid, Shutts conseguiu um emprego para corrigir provas em uma escola local e, quando começou a corrigir uma prova de matemática, teve uma ideia.

"Eu pensei: eu lembro como faz isso. Não era parte do meu currículo, mas eu fui treinado como engenheiro, então fui à faculdade da cidade e me ofereci para trabalhar como professor de matemática. Eu marquei uma reunião com o diretor e consegui o emprego para trabalhar dois dias na semana", contou.

O trabalho novo foi algo que preencheu um vazio que Shutts carregava e ajudou muito em sua auto-estima.

"Não era muito dinheiro, mas isso não importava. O importante era o valor do trabalho - um motivo para acordar de manhã. Quando as pessoas perguntavam o que eu fazia, eu podia dizer: sou professor. Isso era muito importante. Eu sentia que tinha uma função na vida e tinha muito orgulho disso", afirmou.

Agora, com o tratamento da doença reduzido a uma sessão por semana, e com o trabalho no Astriid, seu tempo está sendo muito bem aproveitado.

"Existe uma verdadeira sensação de pertencer a algo importante. Todos os envolvidos estão contribuindo de alguma forma, sabendo que esse projeto tem o potencial de fazer uma diferença real para muitas vidas. Isso é de um valor inestimável".