Topo

Registrar experiências ajuda a amenizar sofrimento

Colaboração para o UOL

14/07/2010 00h01

“Perder é muito difícil, mas perdemos e temos de enfrentar...” A frase que é de uma jovem paciente, consciente da gravidade de seu câncer. “Ana”, como vai ser chamada aqui, elaborou um texto, mesmo que curto, junto à psicóloga Débora Genezini, coordenadora da comissão de psicologia da Academia Nacional de Cuidados Paliativos - ANCP, revendo suas relações e memórias desde a adolescência.

Ana fez escolhas afetivas até o fim, acreditando que sua história não terminava com a morte e deixando legados e memórias às pessoas que mais amava.

“Muito preocupada com minha saúde e vaidade, não esperava adoecer tão precocemente, mas a doença veio. O tratamento foi inicialmente intensivo, sofrido (...). Muitas perdas passaram a permear minha vida, perdas físicas, emocionais, da ilusão que temos de controle, da liberdade... Por mais paradoxal que possa parecer, também ganhei com a doença... Ganhei e tenho ganhado a capacidade de repensar a vida, de re-significar relações, de realizar despedidas (...). Ana emana vida mesmo no final dela! Ana VIVEU! (...)”

Há formas de extravasar sentimentos como a tristeza e a incerteza ou mesmo a presença constante da morte para o paciente. Escrever, fazer atividades artísticas, manter um diário ou um blog ajudam a burlar essas sensações. “É comum a busca pelo sentido da vida, rever a história criada e re-significar”, diz Maria Goretti Sales Maciel, médica de medicina de família e comunidade, diretora científica e sócio-fundadora da ANCP. As histórias vêm espontaneamente, segundo a médica, e, se é uma necessidade do doente, elas precisam ser estimuladas a se materializar em álbuns, vídeos, blogs, diários, simples conversas ou uma despedida póstuma, como a que uma de suas pacientes deixou (foto).

“Ana era uma mulher extraordinária e que amava a vida. A equipe de Cuidados Paliativos se preocupava, porque ela parecia querer ignorar a possibilidade da morte, mas depois que aconteceu e o cartão chegou até minhas mãos, pudemos ver o quanto era lúcida e vivia de acordo com suas crenças, de maneira otimista”, conta Maria Goretti.

Terapias complementares, arte e espiritualidade

Ana Geórgia Cavalcanti de Melo, psicóloga e fundadora da Associação Brasileira de Cuidados Paliativos (ABCP), garante que existem muitas maneiras de se lidar com a angústia. Com o uso de terapias em grupo, musicoterapia, arteterapia, meditação, ioga, reiki e várias outras técnicas pode-se, mais facilmente, entrar em contato com o “eu” profundo e buscar uma maior harmonia e espiritualidade.

“Tive uma paciente muito jovem que era uma líder de comunidade. Enquanto a doença progredia, fazíamos grupos de autoajuda, artes e musicoterapia. Ela se descobriu na arte, fez exposições, ganhou dinheiro e um prêmio de pintura em uma grande indústria. Com o dinheiro, comprou um carro adaptado que a possibilitou dirigir e viajar”, conta Ana Geórgia.

Em maior escala, dois casos ganharam grande repercussão na internet, um há cerca de dois anos, outro recentemente. São dois blogs, o primeiro da americana Michelle Mayer, que sofria da doença autoimune chamada esclerodermia, e o segundo, da canadense Eva Markvoort, vítima de fibrose cística. Os textos falam de angústias, alegrias, rotina e relações, como válvulas de escape e uma forma de dividirem experiências, estarem, de certa forma, ligadas ao mundo.

Em seu último post, chamado “Homecoming”, dois dias antes de sua morte, em 11 de outubro de 2008, Michelle escreveu: “Meu pai olha alheio para o espaço. Gostaria de saber aonde sua mente vai: memórias antigas, um lugar confortável ou simplesmente lugar nenhum. Apesar de suas dores, hoje, ele e minha mãe disseram repetidamente: ‘Deixe-se ir, Michelle. Você já sofreu o suficiente.’ Minha mãe me contou como ela estava orgulhosa de mim, de muitas formas. Ela sempre lamentou a minha saída de casa aos 17 anos para nunca mais voltar. (...) Nos últimos nove meses, disse ela, ‘sinto que vivemos novamente o amor’. Eu me sinto da mesma maneira”.

Michelle intitulou seu blog como “Diário de uma Mãe Morrendo”; já Eva, em seu  ”65 Rosas Vermelhas”, deixou registrado em seu último post, poeticamente, “(...) todas as horas/ a cada hora/ não posso respirar/ algo tem que mudar”. A jovem também morreria dois dias depois, em 27 de março de 2010. (Daiana Dalfito)