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Sinais avisam que o amado pode virar algoz, afirmam especialistas

Estima-se que mais de 2 milhões de mulheres são espancadas a cada ano por maridos ou namorados, atuais ou antigos - Getty Images
Estima-se que mais de 2 milhões de mulheres são espancadas a cada ano por maridos ou namorados, atuais ou antigos Imagem: Getty Images

RENATA RODE<BR> Colaboração para o UOL

16/07/2010 17h15

"Taty, eu amo o Rodrigo, sei que ele me bate porque tenho alguma culpa nisso tudo." Esse é um trecho do e-mail enviado pela médica paulista Glaucianne Hara, dias antes de sua morte. Ela conversava com sua psicanalista e amiga, Tatiana Ades, sobre o relacionamento que mantinha com o marceneiro gaúcho Rodrigo Fraga da Silva, assassino confesso da parceira.

A médica paulista Glaucianne Hara foi morta dia 5 de junho a facadas em frente ao hotel Bauer, na cidade de Torres, no litoral norte do Rio Grande Sul. O marceneiro Rodrigo Fraga da Silva se apresentou à polícia e assumiu a autoria do crime. Ele é casado e mantinha com a vítima um relacionamento conturbado havia três anos.

A frase do início do texto resume a história recorrente de mulheres que se envolvem em relacionamentos suicidas, vivem dias de terror e até têm a vida interrompida por tal decisão. A mídia tem relatado também os casos da advogada Mércia Nakashima e da modelo Eliza Samudio e a pergunta que fica no ar é: há como prever um ato de tamanha violência por comportamentos ou atitudes do companheiro?

Estou te ligando para dizer que dessa vez acabou, acabo de sair de um coma... Ele me chutou e me bateu tanto que fiquei em coma e perdi os movimentos de uma perna. Quero me dedicar aos meus filhos pequenos, agora basta", diz Glaucianne à amiga. E duas semanas depois, o discurso muda: "A verdade é que não consigo, vou atrás dele de novo, ele deve ter tido motivos para fazer o que fez...

Sim, segundo a psicanalista Tatiana Ades, autora do livro “Hades - Homens que Amam Demais” (Editora Isis), que, depois de ouvir tantos casos em consultório e sofrer a perda da amiga Glaucianne dias atrás, comanda um movimento de consciência feminina contra a violência. “Centenas de mulheres morrem por causa de amor patológico, seja porque se matam, seja porque se envolvem com sociopatas. É o que chamo de cegueira emocional: uma codependência que promove a incapacidade de lidar com o outro de forma saudável. Quem vê de fora tem a sensação de que a mulher é ‘burra’, mas o fato principal é que essa ‘burrice emocional’ é uma doença, e o sofrimento é enorme”, explica a especialista.

Alertas

No caso específico da médica assassinada, a psicanalista aponta vários fatores que servem como alerta de que algo não vai bem. “A velha história de que quem fala não faz é pura mentira. O homem dá diversos sinais verbais de que poderá cometer um crime passional ou uma futura agressão física. O simples fato de dizer que irá fazer já é uma ameaça e uma coação, uma forma de intimidar e chantagear a vítima, deixando-a assustada. Essa é uma das características de homens frios, dominadores, narcisistas e, muitas vezes, sociopatas”, afirma Tatiana.

Os números da violência contra a mulher são alarmantes. No Brasil, uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo revela que a cada 15 segundos uma mulher é agredida. Estima-se que mais de 2 milhões de mulheres são espancadas a cada ano por maridos ou namorados, atuais ou antigos.

Os especialistas advertem que pequenas atitudes denunciam um gráfico crescente de agressão dentro de uma relacionamento. O homem que começa a gritar ou a xingar a companheira certamente no futuro pode machucá-la fisicamente. “Se um tapa vier, esteja certa de que muitos outros o seguirão. Qualquer tipo de agressão serve de alarme, porém o que acontece é que a própria mulher, cega pela paixão, quer justificar os atos - mesmo que errados - do seu amado”, diz Tatiana.

Toda forma de controle exacerbado sobre o comportamento do outro é uma expressão de violência. Nas relações entre casais, o controle de ligações telefônicas, correspondências por e-mail, horários e vestuário pode ser o estopim da violência a partir do momento em que a mulher não aceita mais isso

Wania Pasinato, socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP

Em São Paulo, quase 60% dos homicídios são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos fúteis. A socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), Wania Pasinato, acredita que a violência contra a mulher ganhou grande expressão pública principalmente depois da Lei Maria da Penha, instituída em 2006. “Hoje, diversas campanhas procuram estimular mulheres a procurarem as instituições. É preciso ter consciência de que esse é um problema público, de políticas públicas”, declara.

É necessário apontar que a violência contra a mulher não aumentou necessariamente. A mídia dá destaque a alguns casos porque envolvem pessoas famosas ou porque os crimes têm requintes de crueldade, mas a verdade é que a violência sempre existiu. Mas, em um país de cultura machista, o fato não ganhou destaque durante muito tempo. Além desse cenário cultural, há outro fato que contribui para a violência contra a mulher: o vínculo amoroso. “Nós estamos falando de violências que ocorrem no interior de relacões afetivas. Essas mulheres foram agredidas por homens que elas nutriam sentimentos, por quem elas queriam de alguma forma em suas vidas e, quando se veem um relacionamento dessa natureza, não conseguem enxergar a necessidade de escape da situação”, analisa Wania.

Sem contar que muitas mulheres veem a violência como uma expressão de amor, já que existem diversos tipos de violência: a do controle, a do ciúme, a da posse. “Esse pensamento cria amarras para que elas permaneçam nesse tipo de relacionamento. Sair disso não é uma decisão fácil e, às vezes, é algo praticamente impossível para a mulher”, diz Wania. Ela ainda lembra que é fácil deslizar nesse campo e acusar a mulher por ter feito tal escolha. “Não podemos penalizá-la por ter tido esse comportamento porque ela vai atrás do que acredita. A própria Eliza estava cobrando um direito que ela tinha, do reconhecimento de paternidade de um filho que ela não fez sozinha”, afirma.

Ajuda online

Rejeitadora ou rejeitada, quase sempre é a mulher que leva a pior, por isso vou ficar rouco de tanto repetir: afastem-se do agressor

José Geraldo em sua comunidade no Orkut

Pensando em melhorar o quadro caótico da violência, José Geraldo da Silva, recepcionista de um fórum de São Paulo, resolveu criar, em 2005, a comunidade “Contra Violência à Mulher” no Orkut. Hoje, mais de 52 mil pessoas trocam experiências, desabafos e conselhos por intermédio dessa ferramenta. “Depois de ouvir dia a dia queixas e relatos de mulheres que sofriam nas mãos de seus companheiros, decidi fazer minha parte promovendo informações e trocas de experiências na rede social. Sou da época em que, quando o homem batia na mulher, ele pagava com cestas básicas. Hoje, com a Lei Maria da Penha, o quadro melhorou um pouco, mas ainda não é o ideal, pois o problema é cultural dos dois lados: é comum o homem agredir a mulher e é normal ela aceitar a agressão”, afirma José. E complementa: “Na minha rotina, acompanho casos de mulheres que partem para a denúncia só depois da agressão número 30”.