Topo

Conheça os drag kings, mulheres que se transformam em homens

Fábio de Oliveira

Do UOL, em São Paulo

20/06/2013 07h00

Todo mundo já deve ter ouvido falar das drag queens, homens que se vestem e se maquiam minuciosamente e assumem a personalidade de mulheres glamourosas. Os drag kings fazem exatamente a mesma coisa: vestem-se e incorporaram um personagem do sexo oposto ao seu próprio -ou seja, são mulheres trajadas em roupas masculinas, que se portam como homens, muitas vezes um alterego delas.

Os drag kings foram tema de uma das oficinas oferecidas em março de 2013 na Queer Week (Semana Gay, em português), evento dedicado à reflexão sobre gênero e sexualidade, e que vem sendo realizada anualmente, desde 2010, no Instituto de Estudos Políticos, em Paris.

Batizado de "Drag King for A Day" (Drag King por um Dia), o workshop foi conduzido pela artista burlesca americana Louis(e) de Ville. O “e” entre parênteses no nome da artista tem uma razão: Louis é o alterego masculino de Louise. “Eu interpreto Louis em vários shows. É interessante porque ele é um fanfarrão, está sempre tentando provar o quanto ele é bom", diz. 

No curso, Louise ensinou mulheres (também podiam participar pessoas que nasceram homens, mas se reconheciam como mulheres) a encarnar tipos masculinos. "Decidimos incluir o workshop para adicionar uma dimensão mais prática aos estudos de gênero já presentes nas conferências", explica Maud Ritz, uma das organizadoras do evento. Dessa forma, o público poderia experimentar e aplicar os símbolos da interpretação social da masculinidade. "A ideia era tornar mais evidente o impacto do gênero por meio do comportamento e da atuação humanos", diz.

Os responsáveis pela Queer Week chegaram à Louise de Ville depois de lerem um artigo sobre seu trabalho. Foram vê-la em ação num bar parisiense ministrando sua aula de metamorfose e a convidaram para a semana. "Nos pareceu original e interessante por ela ser uma artista burlesca, gay e feminista", diz Maud.

Transformando-se em homem

No workshop, as participantes prendem os seios com grandes fitas adesivas --"binding", em inglês-- para que o peito fique plano, ganham barba e bigode, e aprendem a fabricar pênis e saco escrotal falsos.

Em seguida, vem todo o modo de se comportar masculino. Evitar estampar facilmente um sorriso no rosto é uma das lições. "A maioria das pessoas fica surpresa com o tanto que elas se parecem com seus pais ou irmãos e com a facilidade de assumir uma postura e de ocupar o espaço de um jeito masculino", diz Louise. Mas ela também nota que as mulheres têm dificuldade de se tornar mais reservadas e de adotar uma atitude dominante.

"Não acredito que elas devam ser como os homens, mas tento mostrar-lhes que autoconfiança e atitudes dominantes podem ser representadas. Assim, elas podem reconhecer quando isso está usado contra elas em uma negociação, por exemplo", afirma Louise. Uma postura de “não mexa comigo” em uma rua escura também é bem-vinda.

Segundo Maud, algumas participantes feministas acharam os códigos sociais masculinos revoltantes. “Por meio do workshop, elas descobriram que os homens tomam todo o espaço, enquanto as mulheres são reduzidas a um espaço mínimo", diz.

Quem são os drag kings?

Nascida no conservador estado de Kentucky, nos Estados Unidos, Louise de Ville vive em Paris desde 2005. Em seu país natal, estudou teatro, gênero e sociologia do sexo. "Desde cedo, acreditei no teatro social e o pratiquei, usando a arte para combater o racismo, a violência contra mulheres e a homofobia", diz.

O objetivo oficial da mudança para a França era o de se tornar uma diplomata. Mas ela se tornou uma performer burlesca. "É uma escolha de carreira da qual me orgulho. Faço minha diplomacia na minha roupa íntima agora, com uma mensagem corporal positiva, gay e feminista por meio de uma arte performática estética, erótica, engraçada e acessível", diz ela.

O universo drag king entrou na vida de Louise quando ela se travestiu em um evento beneficente em Louisville, no Kentucky. "Foram as drag queens que me ajudaram a me transformar pela primeira vez. Reverti as técnicas de maquiagem delas para deixar meu queixo mais quadrado e meu nariz maior", diz.

De Ville também tomou emprestado das drag queens o método para fazer seios falsos que utiliza meia-calça e semente de passarinho e, assim, fabricou uma genitália masculina postiça. "Era engraçado ver esse pequeno drag king entre aquelas belas gigantes", diz. Já em Paris, ela conheceu Mr. Mister e Wendy Delorme. Surgiu, então, The Drag King Fem Show, uma performance de trupe que brinca com os diferentes gêneros e sexualidades.

O trabalho da americana lembra muito o de Diane Torr, uma espécie de decana dos workshops de drag king. Nascida no Canadá e criada na Escócia, Diane veio à Brasília em 2011 participar do festival Novadança. Segundo Giovane Aguiar, diretor do evento, a edição daquele ano dedicou-se a questões de gênero e sexualidade, por isso o convite à artista. 

Homem por um dia

Além da performance "Drags and Subjects", Diane conduziu a oficina "Homem Por Um Dia", que vem apresentando mundo afora desde 1989. Mulheres com média de idade de 35 anos assistiram à aula. “Foi uma experiência muito especial. Pela primeira vez, brasileiras tiveram a chance de participar do workshop. Elas eram muito expressivas e atentas à nuance de gesto, aos modos de andar e ao aprendizado de novas maneiras de se comportar e interagir. Acho que foi revelador para elas", afirma Diane.

A bailarina Marcela Brasil, 36, de Brasília, foi uma delas. Seu personagem no workshop foi Andrezinho, um skatista com cavanhaque. "Diane mostrou que não sabíamos como era andar feito um homem", diz. 

Depois de treinarem numa sala como se comportar como um homem, todas as mulheres foram para a rua travestidas, o que foi uma surpresa para Marcela. No final do dia, todas foram para um bar para assistir a um jogo de futebol. A maioria dos presentes, claro, era formada por homens. "Eles olhavam, riam e comentavam. Mas depois ficaram um tanto incomodados", diz Marcela. 

Depois da peregrinação, todas se reuniram com Diane. "A maioria não gostou da experiência por causa da agressividade. Acharam o mundo masculino muito seco e duro. Mas também me senti mais dona do espaço, com liberdade para andar onde quisesse. Um homem se comporta na rua como se o espaço fosse dele, olha para quem bem entender", diz Marcela.

Diferença de tratamento

Responsável pela tradução do roteiro utilizado nas legendas da performance de Diane em Brasília, o antropólogo José Bizerril, professor do Programa de Mestrado em Psicologia do UniCEUB (Centro Universitário de Brasília), diz que há situações em que uma mudança de postura como a vivida pelos drag kings confere mais autoridade às mulheres. 

No livro "Sex, Drag, and Male Roles" (não publicado no Brasil), escrito por Diane em parceria com Stephen Bottoms, uma das primeiras situações nas quais ela saiu em público como homem foi em uma exposição de arte. Ela conta que a diferença de tratamento foi imediata e pessoas abriram caminho para deixá-la passar.

De um modo geral, experimentar com uma identidade de gênero diferente daquela com que nos identificamos desde a infância pode ser muito interessante, segundo Bizerril. "Passada a dificuldade inicial, de aprender a agir com alguma desenvoltura, ocupando uma posição que não é familiar, há muitas coisas a explorar sobre o que é ser homem ou mulher. As mulheres que fazem o workshop têm uma oportunidade de aprender algo sobre sua própria identidade de gênero e também sobre os homens".