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Curtir cada dia como se fosse o último é uma filosofia de vida furada

Cuidado com o excesso de extravagâncias, pois "enfiar o pé na jaca" pode causar arrependimentos no futuro - Orlando/UOL
Cuidado com o excesso de extravagâncias, pois "enfiar o pé na jaca" pode causar arrependimentos no futuro Imagem: Orlando/UOL

Heloísa Noronha

Do UOL, em São Paulo

28/10/2013 07h07

Os livros que se propõem a ensinar qualquer um a ser mais feliz, os gurus de autoajuda, os coaches pessoais e até o inconsciente coletivo pregam que é preciso viver cada dia intensamente, como se fosse o último. Afinal, a única coisa que temos de concreto é o presente. 

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De acordo com essa linha de pensamento, só dessa forma podemos desfrutar ao máximo de tudo aquilo que temos –e ainda daquilo que não temos, se exageramos no entusiasmo na hora de usar o cartão de crédito.

A máxima, no entanto, é praticamente impossível de ser seguida. E, caso alguém tenha coragem de encará-la literalmente, não terá felicidade garantida.

Quando as pessoas pensam em viver intensamente, em geral, têm em mente extravagâncias, como viajar pelo mundo, comer à vontade e realizar desejos –normalmente, caros e/ou pouco saudáveis–, como se a humanidade fosse ser extinta no dia seguinte. Esse comportamento, no entanto, é factível apenas para um grupo muito pequeno.

Para os especialistas em comportamento, viver intensamente significa, em primeiro lugar, valorizar as coisas importantes do dia a dia.


"Tem a ver, principalmente, com a maneira de realizar qualquer atividade, seja ela cotidiana ou grandiosa. Você vive intensamente comendo uma pizza, encontrando com os amigos, trabalhando, nas relações amorosas. Não é a situação em si, mas como ela é vivida", afirma a psicóloga Maria Julia Kovács, fundadora e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo).

Segundo a psicóloga Denise Pará Diniz, coordenadora do Setor de Gerenciamento de Estresse e Qualidade de Vida da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), a intensidade da vivência depende do significado que cada um de nós dá a ela. "Ter sonhos e pensar em estratégias para realizá-los já é uma das fases do viver intensamente".

Sentir que está aproveitando o que de melhor a vida pode oferecer também inclui o envolvimento e o compromisso que cada pessoa tem com a própria existência. "Alguém que mora numa pacata cidade e vive uma rotina simples e previsível pode, perfeitamente, viver intensamente, se está satisfeito com suas escolhas", fala a psicóloga Blenda e Oliveira.


O valor da rotina


Ao imaginar que a felicidade está em vivenciar experiências fantásticas ou luxuosas, muita gente despreza a importância da rotina. E, ao pensar assim, invariavelmente, projeta sua realização no futuro –é nele que se encontra a alegria tão sonhada, e não no momento presente. Esse é um erro que provoca desperdício de tempo e energia.

Para Blenda de Oliveira, as pessoas precisam aprender a se divertir com a rotina e a tirar proveito dela. "É uma pena quando as pessoas esperam a sexta-feira, o fim de semana ou as férias para ‘aproveitar a vida’. A vida pode ser muito divertida todos os dias. Mesmo no trabalho dá para arrumar uma brecha para fazer algo bem simples e agradável, como tomar um cafezinho ou dar uma volta no quarteirão, observando as pessoas, os lugares, o céu", exemplifica a psicóloga.

Não são poucas as pessoas que acreditam que uma vida intensa significa ter de passar por todas as experiências de forma indiscriminada, sem muita reflexão, deixando-se levar pela vontade momentânea. "Essa forma de viver gera ansiedade", declara a psicóloga Sâmia Simurro, vice-presidente de projetos da ABQV (Associação Brasileira de Qualidade de Vida). Ela diz que as pessoas confundem e acreditam que “ter ou fazer coisas” é o caminho para uma vida plena.

"Podemos ter um prazer momentâneo, mas ele tem um tempo de duração que, em geral, é curto. Quando aquela conquista deixa de fazer efeito, voltamos ao mesmo estado de humor de antes. O que se deve perseguir é o bem-estar e a paz interior. Assim, não importa o que se tenha ou faça. É possível se sentir bem e aproveitar o que a vida oferece", afirma Sâmia.

A ilusão do "dane-se"


Mas já que só temos certezas sobre o presente e precisamos valorizá-lo, não seria bom, então, seguir o conselho de tentar viver cada dia como se fosse o último? Para Maria Julia Kovács, da USP, esse "slogan" não passa de uma ideia falsa.

"Pode haver momentos de jogar tudo para o alto e agir sem pensar nas consequências, mas, a longo prazo, essa atitude pode trazer prejuízos às relações afetivas, familiares, sociais e profissionais", explica a psicóloga. "Não pensar no amanhã é bom, às vezes necessário. No entanto, sempre teremos de conviver com nossos medos, traumas e angústias", diz Helio Roberto Deliberador, professor do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Viver o presente nada tem a ver com "ligar o botão do dane-se". "O que é possível, o que é de direito e dever de todos nós, é que possamos viver com a intensidade, mas sempre de forma responsável. Responsável conosco, pela nossa saúde física, mental e social", afirma Denise Pará Diniz.

"Ser íntegro e coerente consigo mesmo dá consistência à vida, é libertador e nos deixa emocionalmente maduros para que possamos aproveitar o melhor que a vida tem para oferecer", declara Sâmia.