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Afeto não é suficiente para constituir família, diz bispo sobre gays

Para psicóloga, o casamento gay aponta para uma mudança na forma de conceber a família, não o fim dela - Getty Images
Para psicóloga, o casamento gay aponta para uma mudança na forma de conceber a família, não o fim dela Imagem: Getty Images

Caroline Randmer e Fábio de Oliveira

Do UOL, em São Paulo

21/01/2014 12h02

A resolução do Conselho Nacional de Justiça determinando que todos os cartórios do país celebrem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo ou convertam uniões estáveis homoafetivas em matrimônios foi, sem dúvida, uma das mais importantes mudanças de 2013 no Brasil. Mas será que o chamado "casamento gay", agora oficialmente reconhecido, pode representar o fim da família? Ou trata-se de uma reinvenção dessa instituição?

"Certamente, o casamento gay coloca em xeque uma determinada forma de conceber a família, a que teria como base a união de um homem com uma mulher”, diz Carolina de Campos Borges, doutora em psicologia pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e professora da UFGD (Universidade Federal de Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul).

"A noção de família formada por pai, mãe e filhos remonta a mudanças socioculturais ocorridas na Europa por volta do século 17 que, conforme o historiador e medievalista francês Philippe Ariès, determinaram o surgimento do sentimento de infância e também de família", explica Borges. 
 
De acordo com a psicóloga, cuja pesquisa de doutorado analisou o lugar que a família vem ocupando no projeto de vida das pessoas nas últimas décadas, a exacerbação do individualismo na vida social contemporânea fez com que a afetividade se afirmasse como elemento essencial para a definição de laços familiares. E foi essa ênfase na realização sentimental que possibilitou novas configurações da instituição.
 
 
"É nesse contexto que se apresenta a demanda de legitimação social da união de duas pessoas do mesmo sexo", diz a especialista. Segundo Borges, o casamento gay é resultado de um processo de transformações que se iniciaram há algumas décadas, quando se reivindicou por liberdade individual, igualdade de direitos e rupturas de padrões tradicionais, como a atuação exclusiva dos homens no espaço público e a restrição das mulheres ao mundo doméstico.

"O casamento gay, a meu ver, não aponta para o fim da família, mas para uma mudança na forma de concebê-la, mudança intimamente marcada, entre outras coisas, pelo respeito à diversidade individual e social", diz a doutora em psicologia.
 
Dom João Carlos Petrini, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), vai na posição contrária. "Por que os ordenamentos jurídicos se preocupam em regulamentar o casamento? Certamente não é para validar a afeição de duas pessoas que se amam. Se assim fosse, regulamentariam as relações de amizade", diz o bispo.

"Reivindicar a equiparação jurídica das uniões de homossexuais com a família, quando elas não dispõem das características que vão além do afeto, tem como consequência a descaracterização dessa estrutura, ferindo seu direito de permanecer assim como se constituiu ao longo dos milênios", afirma.


Para o bispo, o que está sendo projetado é um processo de alteração do significado das palavras. "Matrimônio e casamento sempre indicaram um mesmo fato: a união exclusiva entre homem e mulher. Ao surgir na contemporaneidade a exigência de reconhecer novas formas de viver o afeto, é necessário encontrar novas palavras para tratar de forma adequada realidades diferentes".
 
De acordo com Marcos Horácio Gomes Dias, professor de sociologia na Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo, essa posição quase defensiva já é algo esperado. O especialista afirma que instituições que se apoiam na tradição como forma de legitimidade, geralmente, não aceitam as mudanças que o tempo traz.

"As igrejas estão presas a valores seculares. Reconhecer que casais do mesmo sexo constituem uma família implicaria na revisão dos livros sagrados considerados imutáveis por representarem a própria palavra de Deus".

Além disso, o sociólogo defende que a estrutura familiar é determinada, sim, pelo carinho entre duas pessoas, apesar de não exclusivamente por ele. Também entram em jogo a afinidade, os objetivos em comum e a divisão de despesas entre outros fatores, o que daria a qualquer casal –hétero ou homossexual– o direito de se classificar como família.

Já o pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo, Ed René Kivitz, afirma que a relação entre pessoas do mesmo sexo, apesar de não merecer o carimbo "família" de acordo com os termos religiosos cristãos, ainda deve ser vista como um arranjo familiar. "A convicção religiosa não pode deixar de reconhecer que os casais homossexuais devem receber do Estado todo o amparo para que possam se unir civilmente e tenham resguardados todos os direitos inerentes a essa união".
 
Para Carolina de Campos Borges, a dificuldade de reconhecimento do casamento homossexual por vários segmentos da sociedade também não é surpresa, pois nenhuma modificação social opera sem resistências.

"Pode-se comparar essa não aceitação ao que ocorria, por exemplo, nos anos 1980 e início dos 1990 com relação às famílias que viviam o divórcio. Acreditava-se que a separação do casal traria consequências maléficas para seus filhos", conta ela. 
 
"Atualmente, quando o divórcio ocorre com mais frequência do que antigamente, sabe-se que o que causa maior prejuízo para o desenvolvimento dos filhos é a pouca qualidade do relacionamento conjugal e não o fato de estar casado ou não. Isso porque a felicidade individual dos pais interfere na forma como desempenham suas funções parentais", explica Borges. 
 
A também psicóloga Ida Kublikowski, da PUC-SP, também aposta na metamorfose da ideia de família. "Ela está se adaptando ao mundo contemporâneo", diz ela. "Seu conceito nunca morrerá, mas se diversificar e se adequar aos costumes da sociedade moderna, como já vem acontecendo".

Para Kublikowski, estamos acostumados aos padrões arraigados da entidade. "Esse modelo ideal e burguês, que se estabeleceu há séculos nas classes socioeconômicas mais altas, não é mais necessariamente o que predomina nos dias de hoje", fala a especialista.