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Ano novo, velhas bandeiras: por que o feminismo continuará pregando o óbvio

A skatista de Paraty Giselle Ferreira. Ela não andará na pista a ser inaugurada na cidade - Reprodução/Internet
A skatista de Paraty Giselle Ferreira. Ela não andará na pista a ser inaugurada na cidade Imagem: Reprodução/Internet

Vinícius Segalla

Do UOL, em São Paulo

11/01/2016 18h40

Giselle Alves Ferreira, 33 anos, skatista, moradora de Paraty (RJ). Skatista em cidade sem pista de skate. A prefeitura da capital cultural fluminense promete entregar o primeiro half da cidade ainda neste mês, não que seja a primeira data de entrega prometida.

Não importa quando ficará pronta a pista, não para Giselle, não mais. Ela foi morta no dia 30 de dezembro do ano passado. Ela foi morta a pauladas no centro do município, Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1958. Foi arrastada pelas ruas de pedra (já morta? Ainda viva?), deixada em frente a uma casa, o rosto desfigurado, as partes genitais aparecendo, as partes genitais sangrando. A polícia investiga o caso e não divulga suspeitos. A hipótese de estupro seguido de homicídio é a principal linha de investigação. Ninguém foi preso até agora.

Giselle não viveu para ver chegar ao fim 2015, o ano em que o feminismo tomou corpo no Brasil. O ano do Meu Primeiro Assédio, do Meu Amigo Secreto, das Mulheres Contra Cunha, das novas blogueiras feministas. Da Primavera das Mulheres?

Quem está viva e na luta neste 2016 é Thaís Santos, 22 anos, estudante de Letras, ativista feminista, moradora de Paraty. Na última quinta-feira (7), ela participaria da manifestação no Centro Histórico de Paraty em repúdio à violência que sofreu Giselle, que sofre a Mulher. Mas ela não foi.

Tivesse ido, provavelmente teria empunhado um cartaz como os que suas colegas empunharam. Na primeira semana do Ano Novo, nas ruas centenárias de Paraty, de novo as mulheres, com velhos cartazes. Novamente, as mulheres sendo obrigadas a bradar o óbvio em seus cartazes. O Machismo Mata. A única causa do estupro é o estuprador. Minha roupa não é um convite. Meu decote não tem nada a ver com você. Se eu disser não, é não. Ensine o Homem a respeitar, não a Mulher a temer. Queremos uma Delegacia da Mulher em Paraty. Chega de Feminicídio.


Ainda terão que lutar e gritar o óbvio por muito tempo até que todos entendam. Afinal, quão distantes não estarão de compreendê-lo os administradores da página do Facebook “Não mereço mulher que bebe e fuma”, que são os mesmos da página “Não mereço mulher rodada”?

Na última quinta, dia 7, dia de luto e manifestação em Paraty, eles entraram na página do Facebook da Thaís Santos. Pegaram uma foto da moça que não conhecem, mas que sabem ser ativista feminista. Dentre as dezenas de imagens, da Thaís trabalhando, mergulhando, fotografando, dançando, sorrindo, escolheram uma da tarde do Natal. Uma em que ela está na rua, onde também estavam outros moradores do bairro e familiares, com Thaís brincando de fazer pose, com uma lata de cerveja e um cigarro na mão.

Publicaram em sua página, sobre os dizeres: “É esse tipo de mulher que quer para seus filhos? É esse o exemplo que eles terão? Quer que seus filhos sigam o mesmo caminho? (...) A degeneração da sociedade está cada vez mais forte e a depravação moral tem cada vez mais sido motivo de festa.” Abaixo da foto, a provar que não são poucos os com dificuldade em compreender o óbvio, dezenas de comentários de deboches e aprovação à postagem.

Fala Thaís: “Uma página de pessoas com quem não vale perder tempo, mas o que me incomodou foi a nossa vulnerabilidade. Pegam sua imagem, descontextualizam, fazem críticas sem nem te dar chance de falar nada”.

Assim, Thaís escreveu para os administradores: “Oie tudo bem? Então, acho que já tiveram alguns milhões de denúncias sobre a página de vocês, mas tudo bem, eu tô vindo aqui de boas só pedir pra vcs excluírem mesmo a foto, beleza? Já tenho print de tudo, mas só queria mesmo que vocês apagassem a foto, valeus?”

A resposta demorou quatro minutos para chegar. “Sua foto está na página? Então você deve saber que não está lá à toa. Lide”. Thaís ainda insistiu, disse que não tinham autorização nem dela nem do fotógrafo para reproduzir a imagem. A resposta: “Desculpa, você é alguma famosa, é atriz? É advogada? Ou alguma coisa? Não vou apagar. Pode ir lá denunciar.” A tarde passou, Thaís não foi à manifestação, foi denunciar à rede social.

Se não foram milhões, as centenas de denúncias contra a postagem recebidas pelo Facebook, obviamente, não sensibilizaram a empresa, já que, identicamente, assim respondeu a todas:

Analisamos sua denúncia. Agradecemos o tempo dedicado em denunciar algo que você acredita violar nossos Padrões da Comunidade. Denúncias como a sua são uma parte importante do processo para tornar o Facebook um local seguro e acolhedor. Analisamos a página que você denunciou por assédio e concluímos que ela não viola nossos Padrões da Comunidade.

Resposta diferente dá a empresa quando fotos com seios à mostra, no contexto que for, são “denunciadas” a seus moderadores.

Tudo isso na primeira semana de 2016, o ano seguinte ao da “Primavera das Mulheres”. Teria havido alguma real evolução dos últimos 12 meses para cá? Fala Thalita Aguiar, 27 anos, professora, moradora de Paraty, ativista feminista, uma das organizadoras da marcha do dia 7: “O avanço principal é que agora somos mais numerosas. O feminismo deixou de ser um tema tabu, totalmente estereotipado, com as feministas estereotipadas também. Esses estereótipos ainda existem (baranga, feminazi, mal comida, mal amada) mas agora temos mais coragem de falar. As mulheres começaram a entender quais são os tipos de violência. Porque a questão da violência é tão embutida e tão abrangente, que às vezes é difícil de detectar e apontar, porque ela é naturalizada."

"O fato de estarmos começando a falar sobre a violência que nos oprime vai ter um efeito algum dia. As mesmas bandeiras têm que continuar sendo erguidas enquanto existir violência doméstica, feminicídio, assédio nas ruas, pedofilia, enquanto nossas denúncias continuarem a não violar padrões de comunidades.”

E até quando será necessário continuar a pedir e gritar o óbvio? Fala Thaís Santos: “É complicado dizer até quando. Porque é o óbvio, mas, para muitas pessoas, não é óbvio. No meu caso, muitas pessoas vieram me dizer que essa página (Não mereço mulher que bebe e fuma) ‘não foi feita por um homem de verdade, talvez por um gay, porque homem de verdade não faz isso’."

Thaís Santos, feminista de Paraty - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Thaís Santos, estudante de Letras, ativista feminista: "Serão ainda séculos de luta"
Imagem: Arquivo Pessoal

"O que não percebem é que homens fazem isso. São os homens que fazem isso. Assim como são os homens que estupram a gente. Não há que se falar, ‘ah, porque é um monstro’, Não! Não é um monstro, é um homem, como qualquer outro. É preciso acabar com a ideia de que são monstros, pessoas de outro mundo, não são! São pessoas normais, é o seu médico, o seu vizinho, o cara da padaria. É preciso desconstruir toda uma forma de pensamento das pessoas, uma forma que não vem de ontem, mas de milhares de anos."

"Às vezes, parece que a gente está lutando e parece que não está acontecendo nada, mas a gente tem que parar e pensar no futuro. O pouco que a gente vai mudando por agora, a esperança é que vá refletindo nas gerações futuras.”

Finalmente, àqueles que já se cansaram do “excesso” de feminismo em 2015, Thaís informa o óbvio: “Serão ainda muitos e muitos e muitos anos, serão ainda séculos de luta. Até que as mensagens dos cartazes das feministas se tornem óbvias não apenas para alguns, mas para todos.”