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O maior fardo que as mulheres carregam é o ódio ao próprio corpo

Taryn Brumfitt, ativista australiana e produtora do documentário "Embrace" - Divulgação
Taryn Brumfitt, ativista australiana e produtora do documentário "Embrace" Imagem: Divulgação

Daniela Carasco

do UOL

05/10/2017 04h00

O documentário “Embrace”, disponível na Netflix, joga luz sobre um grave problema que ainda oprime muitas mulheres: o ódio ao próprio corpo. O nome por trás do longa é Taryn Brumfitt, australiana e ativista que enfrentou uma verdadeira cruzada contra a própria silhueta até alcançar a autoaceitação. Sua batalha é comum também a muitas, que chegam inclusive a deixar o emprego e a vida social por conta da baixa autoestima.

A luta de Taryn só terminou depois do nascimento do terceiro filho, uma menina. Em sua busca pela silhueta perfeita, chegou a virar fisiculturista. Nem o corpo sarado, porém, foi suficiente para que ela se sentisse feliz diante do espelho. Decidida a transmitir valores corporais positivos à caçula, ela decidiu esquecer os padrões de beleza. A mudança deu origem ao Body Image Movement, que ganha as redes com imagens e mensagens de valorização dos mais variados formatos de corpo.

Segundo a nutricionista comportamental Paola Altheia, ativista body positive e autora do blog “Não Sou Exposição”, “a insatisfação corporal é a maior chaga da mulher ocidental contemporânea”. O padrão que impera hoje é o europeu caucasiano, da mulher bonita, magra e loira. Para ela, estamos vivendo no olho do furacão da obsessão pela imagem, fortalecida pela indústria do emagrecimento e pelo sucesso das musas fitness.

Beleza como valor pessoal

Paola lamenta o fato dos atributos físicos terem ganhado tanta importância. “Viço, atratividade sexual e potencial reprodutivo definem hoje o valor da mulher. Quando ela envelhece, engorda e tem filho, é como se seu prazo de validade tivesse vencido”, conta. “Isso é muito cruel e excludente. Beleza é tratada como sucesso, saúde e aceitabilidade.”

Em seu consultório, ouve com frequência relatos de pacientes que não vivem plenamente por não se acharem bonitas. Muitas não vão à praia, evitam frequentar ambientes sociais e chegam até a se autosabotar no trabalho por conta da insegurança em relação à própria aparência.

“Acompanhei uma menina que trabalhava em uma repartição, era competente, ganhava bem e tinha grandes chances de ser promovida. Entre suas atribuições diárias, precisava tirar cópias de documentos. Isso lhe exigia cruzar o escritório diariamente, seu maior desafio. Por se achar gorda e feia, achava que os colegas riam dela durante o trajeto. Por isso, pediu demissão.”

antes depois - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Antes e depois de Taryn Brumfitt
Imagem: Reprodução/Facebook
Não é mimimi!

Apesar de parecer uma voz do subconsciente, essas exigências estão em todos os lugares e são absorvidas naturalmente. Há quem minimize essas dores, mas ela impacta a vida das mulheres todos os dias. “Hoje, mais do que ganhar dinheiro, as pessoas querem ser magras”, diz Paola.

A profusão de capas de revista, publicidade, desfiles de moda e blogueiras fitness é o combustível para essa onda de repúdio. O corpo retocado acabou virando algo normal, enquanto o errado ganhou a pecha de inadequado. Com isso, celulite, cicatriz e dobrinhas foram completamente eliminadas desse referencial distorcido que é disseminado como um novo luxo. Seu excesso tem até nome: ortorexia, um transtorno alimentar marcado pela fixação por padrões “saudáveis”.

“A beleza, assim como o prestígio social, foi e continua sendo tratado como um privilégio para poucos”, diz a nutricionista. Se na época das beldades renascentistas, as mulheres flácidas e curvilíneas eram valorizadas, já que ficavam dentro do castelo, sem trabalhar, usufruindo de farturas. Hoje, é estimado quem tem a prerrogativa de se dedicar exclusivamente à manutenção do próprio corpo.

“Mas não dá para demonizar as blogueiras. Elas estão apenas se aproveitando da resposta expressiva do público.”

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Cultura da dieta

No extremo oposto desse movimento, está o crescimento da obesidade. Segundo o Ministério da Saúde, nos últimos 10 anos, a prevalência da obesidade no Brasil aumentou 60%. Apesar de contraditório, Paola garante que ambos os assuntos estão mais do que nunca interligados. O motivo: a prática crônica de dietas.

As pessoas criaram uma relação de pecado e penitência com a comida. E isso é grave. O alimento deixou de ser visto como algo que nos ajuda a manter vivos, para virar aquilo que nos engorda, adoece e sabota esforços”, explica Paola. “Está todo mundo tentando resolver a obesidade com projetos fitness. Mas a realidade é que as pessoas não fazem dieta porque estão gordas. Elas são gordas porque fazem dieta.”

Contrária a qualquer tipo de regime da moda, a especialista faz questão de dizer que o histórico de pessoas gordas é sempre dominado por inúmeras tentativas de emagrecimento radicais que começaram na adolescência. A longo prazo esse hábito criou um ganho de peso progressivo. O problema, segundo ela, está no desequilíbrio alimentar.

A relação com a comida

“Ao longo dos últimos 40 anos, foi criada uma cruzada anti-gordura. Só que ao eliminá-la do cardápio, aumentou-se o consumo de carboidrato, que, em excesso, leva ao aparecimento de doenças crônicas, como a obesidade. Como resposta, surgiu então a ‘carbofobia’. E a proteína se transformou no grande aliado. No futuro vamos ter que lidar com um grande problema de insuficiência renal e falência hepática por conta disso. Nas décadas de 80 e 90, as pessoas tinham medo de ovo. Hoje, os jovens comem 20 ovos por dia, acham maravilhoso, só que morrem de medo de pão.”

Nessa dinâmica problemática de vilão e aliado, quem sai ganhando é a indústria do emagrecimento, que depende do insucesso para se manter. Ela precisa de clientes cativos dependentes da sensação do ‘agora vai’. Por isso, investe em novas soluções que não entregam o que prometem para fazer a máquina girar. “Prova disso está nos alimentos da vez. Já tivemos o goji berry, agora o óleo de coco. Pouco a pouco, ele já vai perdendo espaço para o kombuchá. É um ciclo sem fim.”

Autoaceitação é o catalizador da mudança

A luz no final do túnel só virá, segundo ela, da força do movimento que prega a autoestima feminina, independentemente do número do manequim. E ele começa dentro de casa, diante do espelho.

Ao questionar 100 mulheres para o documentário sobre a palavra que definia seus corpos, Taryn ouviu apenas termos pejorativos. Cerca de 90% delas odiavam a própria silhueta. “Caçar defeitos em seu próprio reflexo é um ritual privado de toda mulher”, diz Paola. “Todas precisam parar de descrever a si mesmas como horrorosas, feias, nojentas. É preciso tirar o corpo perfeito do pedestal, entender que cada silhueta é normal.”

Isso deve acontecer inclusive entre as profissionais de nutrição. Convidada para ministrar aulas e cursos em universidade, a especialista tem notado um número crescente de estudantes com distúrbios alimentares. “Elas se matriculam já tendo o problema e, em vez de se tratar, aprendem ferramentas – contagem de calorias, leitura de rótulo -- que contribuem para a manutenção. Com o diploma em mãos, passam a perpetuar esses desajustes. É como um cego guiando outros cegos.”