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Luciana Bugni

"Ela é quase da família" - como estamos tratando as domésticas

Luciana Bugni

20/10/2017 08h00

Olhar pras cuecas do ex não parece ser um grande negócio… (Foto: iStock)

 

Ela chegou ao ponto de ônibus esbaforida. Às 13h, o sol de rachar que tem feito nessa cidade em outubro, ela carregada com bolsa, uma térmica e um saco plástico grande cheio de roupas. Sorrimos uma para a outra do jeito que deu. "Calor, né?", eu disse, afastando minhas coisas do banco quente de pedra para que ela também pudesse sentar e se recompor. Nenhuma sombra. "Calor demais. Ia a pé, mas não dá, não. E vou chegar no segundo serviço atrasada", ela enxuga o suor da testa.  "Putz, vai começar de novo agora?", eu lamento. É sexta-feira, hora do almoço, parece que o mundo todo está desacelerando e nós duas ali no ponto de ônibus esperando transporte para começar a segunda jornada na contramão da humanidade.

"Pois é", ela senta fazendo um muxoxo. "Era um só, agora eles inventaram de se separar e resolveram dividir a empregada", resmunga resignada. Eu pergunto como é isso, curiosa. Ela explica que todas as manhãs vai à casa dele, que desde o divórcio se mudou para um apartamentinho ali perto. Na hora do almoço, vai para o apartamento onde ela vive com os filhos e começa a limpar do zero. Cada um paga metade do salário. Ela limpa duas casas e recebe o que recebia antes por limpar uma só. Evito tocar nesse assunto — está quente demais para a gente falar em injustiças trabalhistas em 2017. Pergunto de quem ela gosta mais para disfarçar minha indignação. "Eu gosto é dela. Mas agora, com eles separados, tenho que limpar a casa do patrão também. E lavar a roupa dele", aponta para o saco plástico que carregava com dificuldade. "A casa dele é pequena, tenho que lavar na dela". Dois apartamentos mais o serviço de lavanderia e delivery, eu penso.

Tento desviar o assunto outra vez: "E a patroa não se importa de ter as roupas dele no varal penduradas?" Ela só dá de ombros como quem estranha a pergunta. "Ela viu essas cuecas por 20 anos, vai se importar com o quê?" Não digo nada. Sei lá, se as cuecas forem velhas, pode sentir saudade. Ou ojeriza. Se forem novas, nem sei. Eu que não quereria saber o que meu ex-marido anda usando nas partes de baixo. Logo penso que a patroa não deve ficar olhando para o varal.

Não tenho nada a ver com isso, eu lembro em seguida. Ela, mesmo reclamando um pouco para a desconhecida no ponto de ônibus, não parece estar indignada com a situação. Aceita, porque, como tantas, precisa do emprego. No livro "Na Minha Pele", Lázaro Ramos, filho de doméstica, diz: "A empregada é uma figura muito presente nos lares brasileiros. É 'quase da família', como se diz. Mas este é um não lugar — porque ela de certa forma abandona sua família e nunca entra na outra. Na minha cabeça, isso sempre criou uma confusão danada. Mesmo vivendo sob a falsa cordialidade de sua patroa, que vez por outra fazia questão de mostrar 'quem é que mandava'; mesmo vivendo situações que são dolorosas de lembrar, como não se permitir comer carne — ou talvez não receber permissão para tal — na casa da patroa e ter que se alimentar basicamente de arroz e ovo, enquanto um delicioso escaldado de carne feito por ela mesma fervia no fogão… mesmo assim, minha mãe não era uma figura queixosa. Como isso era possível? Meu estômago revira. Minha mente entorta quando penso no tanto que a mentalidade escravagista ainda molda as relações patrão/empregado". Lázaro viveu de perto e sabe o que está dizendo.

Não tenho nada com isso, mas se não estivesse tão quente eu teria querido abraçá-la. Sinto um pouco de raiva do casal — outra coisa que não deveria. Do divórcio deles ter prejudicado a empregada. De todo mundo estar tão ensimesmado na própria dor que não consegue nem ver o que está doendo no outro. Quero falar para ela reclamar, que o saco é muito pesado, tem até lençol, não dá para subir carregando aquilo. Nem ouso perguntar o que tem na térmica. Fico quieta.

Então o ônibus dela vem vindo, ela geme para levantar as sacolas do banco de pedra, se ajeita, se despede. Boa sorte, eu digo.

E fico quieta de novo. Lá longe, vejo meu ônibus subindo a avenida.

Sobre a autora

Luciana Bugni é gerente de conteúdo digital dos canais de lifestyle da Discovery. Jornalista, já trabalhou na “Revista AnaMaria”, no “Diário do Grande ABC”, no “Agora São Paulo”, na “Contigo!” e em "Universa", aqui no Uol. Mora também no Instagram: @lubugni

Sobre o Blog

Um olhar esperançoso para atravessar a era digital com um pouco menos de drama. Sororidade e respeito ao próximo caem bem pra todo mundo.