Topo

Saraus invadem bares da periferia de São Paulo e até mesmo vagões do metrô

Integrantes da Cooperifa recitam poemas durante sarau em um bar no Capão Redondo - Nelson Almeida/AFP
Integrantes da Cooperifa recitam poemas durante sarau em um bar no Capão Redondo
Imagem: Nelson Almeida/AFP

Natalia Ramos

De São Paulo

21/02/2017 14h55

Tateando para se levantar de sua cadeira, ela caminha com ajuda até o microfone: os versos declamados por uma mulher cega rompem o silêncio da noite de São Paulo.

A cena é parte de um ritual que se repete há mais de 15 anos, semanalmente, em um bar da periferia da zona sul paulista, onde dona Edite e tantos outros participam do "Sarau da Cooperifa", se entregando à beleza das palavras.

Edite Marques tem 74 anos e é cega há dez, mas garante à AFP que estes encontros são uma maneira de se reencontrar com a luz e com a vida.

"Vim pela primeira vez em 2006. Estava perdendo a visão e a Cooperifa para mim é um livro aberto onde me encontrei outra vez 'lendo'", conta esta mulher que memoriza os poemas escutando gravações em fitas cassete.

Quando declama o extenso e dramático "Navio negreiro", de Castro Alves, o silêncio inunda o bar do Zé Batidão, sede deste sarau.

A liturgia é simples: microfone aberto para quem quiser recitar poesia, própria ou de outros; escutar em silêncio e aplaudir com entusiasmo cada poeta ou declamador.

O Sarau da Cooperifa - Cooperativa Cultural da Periferia - foi criado em 2001 pelos poetas Sérgio Vaz e Marco Pezão, orgulhosos moradores da periferia.

"Não tem espaços culturais na periferia, não tem nada. Mas em todas as periferias sempre tem um bar e a gente ocupou esse espaço e o transformou em nosso espaço, onde ouvimos nossa voz", diz Vaz, reconhecido modelo da chamada Literatura Marginal.

"Essa região já foi muito violenta, a gente tinha vergonha de dizer que morava aqui. Mas a Cooperifa trouxe autoestima, permitiu nos assumirmos como gente, falar 'somos daqui, moramos aqui, aqui estamos'. Não queremos imitar ninguém, não queremos imitar os ricos. É um ato de resistência", afirma este poeta de 52 anos.

Mais de cem pessoas participam dos encontros semanais.

Da Corte às favelas

Cooperifa - Nelson Almeida/AFP - Nelson Almeida/AFP
Sarau da Cooperifa em um bar no Capão Redondo
Imagem: Nelson Almeida/AFP

A Cooperifa é considerada pioneira neste movimento que se expandiu pela periferia de São Paulo e chegou ao centro. Existe o Sarau do Binho, um dos mais antigos, o do Grajaú, Suburbano Convicto, Brasa, entre muitos outros.

Alguns são realizados em bares, outros são itinerantes. Já se replicaram em outras cidades e não há unanimidade sobre quantos existem atualmente. Os saraus chegaram ao Brasil séculos atrás com a Corte portuguesa, mas eram espaços exclusivos da elite.

"Nunca deixaram de estar presentes na cultura brasileira, mas começaram a se vincular fortemente com as periferias desde 2001, quando começou a funcionar a Cooperifa", explica à AFP a argentina Lucía Tennina, doutora em Literatura e especialista nos saraus paulistanos.

"Hoje suas referências são várias: o hip hop, a literatura de cordel, a cultura negra e as igrejas evangélicas" que existem em abundância nas periferias brasileiras, acrescenta.

Em uma noite de sarau são combinados os poemas de Carlos Drummond de Andrade, com, por exemplo, os versos melancólicos sobre a rotina das empregadas domésticas do rapper Cocão Avoz, ou outros sobre ansiedade e mudança do artesão Renato Raimundo, de 31 anos, ambos assíduos participantes destes eventos.

"Eu leio minha própria poesia, preciso me expressar. Escrevo sobre tudo: vida cotidiana, desigualdade, sentimentos, sobre derrotas e vitórias. Eu sempre olhava a Cooperifa de longe e um dia pensei 'eu também posso fazer'", conta Raimundo.

Poesia ambulante

A poeta Mel Duarte - Nelson Almeida/AFP - Nelson Almeida/AFP
A poeta Mel Duarte, 28, integrante do coletivo Poetas Ambulantes que, uma vez por mês há cinco anos, pegam o transporte público para declamar poesia ao público
Imagem: Nelson Almeida/AFP

A professora Edilene Santos e seu parceiro Daniel Alexandrino estimulam o sarau do bairro do Grajaú, na zona sul de São Paulo.

Funciona uma vez por mês, em um bar, há três anos. Eles se autofinanciam - como todos os grupos -, embora há pouco tempo contem com o apoio municipal para realizar um documentário sobre o agito cultural em seu bairro.

"O mais bonito do sarau é que participa a própria comunidade", diz Santos, de 49 anos. "Aqui vem crianças e os mais velhos; muitos poetas já conhecidos e os que estão começando a escrever".

A explosão dos saraus deu base para outras iniciativas como o grupo dos Poetas Ambulantes que, uma vez por mês há cinco anos, pegam o transporte público para declamar poesia a um público que, em geral, é de trabalhadores com rostos cansados voltando para seus lares.

"A literatura, a poesia, pode sair do seu pedestal e vir aqui", diz à AFP a poeta Mel Duarte, de 28 anos, enquanto o metrô avança pela cidade.