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Paola Machado

No pain, no gain: será que ter dor após o treino é sinônimo de resultado?

Paola Machado

10/08/2018 04h00

Crédito: iStock

A dor muscular de início tardio é uma resposta comum do organismo frente a esforços que o corpo não está acostumado a fazer –tipo quando você ajuda seu cunhado a fazer uma mudança no fim de semana, ou um treino novo na academia — e a exercícios de alta intensidade/duração.

A dor tende a se iniciar de seis a oito horas após o treino, podendo atingir seu pico em até 48 horas, dependendo de fatores como volume e intensidade do exercício, estado de treinamento (iniciante, intermediário, avançado) e fatores genéticos (variabilidade inter-individual).

Nas academias, boa parte dos praticantes de musculação considera a dor muscular como um dos melhores indicadores da efetividade do treino, ou seja, a pessoa treina em busca da dor do dia seguinte.

É cada vez mais comum escutar a frase: "O treino de ontem não 'pegou', pois não estou sentindo dores".

De fato há uma crença antiga de que a dor muscular é altamente necessária para que haja a remodelação muscular –reparo das microlesões — ocorridas durante o treino. Mas você não precisa necessariamente sentir dor muscular para ter hipertrofia.

Para compreender melhor o porquê disso, precisamos saber de duas coisas.

Como você sente a dor muscular?

A dor é um fenômeno dinâmico que representa uma resposta de "defesa" do sistema nervoso. Trata-se de uma sequência de eventos interativos, sendo eles:

  1. Sinalização local periférica;
  2. Ativação de vias aferentes do sistema nervoso, levando a mensagem da ocorrência de uma lesão ou algum estímulo potencial causador de dor;
  3. Integração desta informação por meio de sinapse no corno posterior da medula espinhal;
  4. Resposta de dor interpretada pelo indivíduo, podendo ser sentida em diferentes situações como após pisar em um prego ou após microlesões das fibras musculares.

Após as microlesões naturais do treinamento de força, a dor muscular é decorrente de um processo inflamatório agudo instalado.

Os danos no tecido muscular são percebidos por células do sistema imune que, por sua vez, sinalizam para outras células  –fatores de crescimento — ativarem processos reparadores e regenerativos. Porém, esta dor sentida é muito relativa e a hipertrofia não depende somente de processo inflamatório.

A interpretação da dor muscular após microlesões está longe de ser compreendida dentro de um contexto linear.

A interação entre os diferentes neurotransmissores, as vias inibitórias e excitatórias da dor, as características motivacionais, psicológicas e contextuais — repetição do estímulo — influenciam diretamente esta interpretação.

Em outras palavras, de acordo com a repetição dos estímulos no treinamento de força, duas pessoas com estrutura muscular parecida submetidas a estímulos "semelhantes" podem vir a sentir níveis distintos de dor, ou até mesmo a ausência dela. O limiar de dor é passível de variabilidade individual e também se modifica com o treinamento, sendo que quanto mais treinado o indivíduo é, menos susceptível a dores musculares ele está.

Qual a possibilidade de haver hipertrofia com ausência de dor muscular?

A hipertrofia é uma adaptação extremamente complexa e está longe de ser representada por um único mecanismo.

As pessoas que treinam com o foco na dor muscular estão sempre atrás de microlesões e, consequentemente, no quadro de inflamação aguda. Porém, este é apenas um mecanismo pelo qual acontece a resposta hipertrófica. Sem falar que, como o limiar de dor modifica com o treinamento, as cargas ou manobras necessárias para atingi-la podem ultrapassar a relação ideal estímulo-descanso, levando a um desequilíbrio favorável a degradação proteica muscular (quadro catabólico) –ou seja, você vai perder músculos em vez de ganhar.

Outros mecanismos contribuem de forma conjunta para hipertrofia, podendo ser citado como um dos principais a mecanotransdução, que é a transformação do sinal mecânico da contração muscular em cascata de sinalização intracelular a favor da síntese proteica miofibrilar.

Pelo mecanismo de mecanotransdução fica fácil compreender que, mesmo não havendo dor muscular, caso o estímulo mecânico –a contração — tenha sido adequado no dia certo, na hora certa e no volume e intensidades adequados a demanda específica do organismo, haverá um sinal para o núcleo da fibra muscular sintetizar proteínas contráteis, gerando um quadro anabólico (de construção muscular).

O inchaço celular e a hipóxia tecidual também estão envolvidos com a hipertrofia e são resultados do tipo de estímulo empregado durante o treino.

A sincronia destes mecanismos associada à oferta adequada de nutrientes e a boa relação estímulo/recuperação é que direcionam a um quadro anabólico, com maior síntese proteica e menor degradação em médio e longo prazo.

Portanto, mesmo sem dor muscular, por questões individuais de sensibilidade ou por possuir um limiar alto para a sensação, vão haver microlesões e estímulo para o núcleo da célula sintetizar proteínas, continuando o processo hipertrófico.

Não quero dizer aqui que a dor não é necessária e que devemos evitá-la, e sim que treinar somente em busca desta dor não significa necessariamente ganhos como preconiza a teoria do "no pain, no gain".

O professor Tudor Bompa, da Universidade de York, em Toronto, no Canadá, famoso no mundo do treinamento desportivo, escreveu em um dos seus recentes livros (BOMPA et al., 2013) a seguinte frase: "Por conta de teorias não científicas como 'No Pain, No Gain' e sobrecargas excessivas que dominaram o treinamento de força e o fisiculturismo, a maioria dos atletas acreditam em treinamento pesado no dia a dia independentemente do período de treino".

Mesmo que ele tenha pensado em atletas, isso reflete o que quero passar a vocês, pois é o que também acontece no dia a dia das academias.

A principal mensagem é: treine de forma equilibrada, adequando estímulo e repouso, independentemente das dores. Em vez de se preocupar tanto com a dor muscular, perceba em sua periodização as modificações do organismo associadas ao volume-intensidade de treino como o sistema imunológico –sistema de defesa do seu organismo — e o padrão de sono.

Estar com muito sono no trabalho, com necessidade de dormir mais para se recuperar dos treinos pesados, ou sentir a ameaça de um resfriado repentino mesmo comendo relativamente bem podem ser sinais sinais de treinos pesados. Ou seja, naquela semana, semana de estímulos extremamente fortes, o professor espera estas respostas de você –sono no trabalho e possíveis ameaças de resfriado–, para que na próxima semana ele regule a carga de forma recuperativa.

O que devemos reparar sempre é o que ocorre na musculatura do indivíduo altamente treinado (alto limiar de dor), do iniciante e intermediário (níveis distintos de adaptação muscular e maior propensão a dor) assim como a variabilidade inter-individual, que são as pessoas com maior ou menor sensibilidade para dor muscular independentemente do estado de treinamento.

Portanto…

Treine de forma equilibrada e adeque o estímulo e repouso, sem pensar se as dores vão aparecer nos momentos que você gostaria, pois mesmo sem dor pode haver reparo nas microlesões que ocorrem durante seus treinos.

Mesmo que exista um pequeno fundamento na teoria –inflamação e reparo de microlesões –, ela é totalmente inadequada e incoerente com um dos pilares do treinamento físico (princípio da adaptação). E esta teoria não considera as variabilidades inter-individuais, induzindo as pessoas a treinarem de forma errada em busca da dor e, consequentemente, exagerando na relação volume-intensidade, uma vez que o limiar da dor aumenta com o treinamento.

Procure, sempre, um profissional qualificado para orientar você.

Referências:
– BOMPA T. PASQUALE M. CORNACCHIA L. SERIOUS STRENGTH TRAINING. 3Ed. 2013.
– LODO L. MOREIRA A. UCHIDA M. C. MIYABARA E H. UGRINOWITSCH C. AOKI M. S. EFEITO DA INTENSIDADE DO EXERCÍCIO DE FORÇA SOBRE A OCORRÊNCIA DA DOR MUSCULAR DE IN.

Sobre a autora

Paola Machado é fisiologista do exercício, formada em educação física modalidade em saúde pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), mestre em ciências da saúde (foco em fisiologia do exercício e imunologia) e doutoranda em nutrição pela UNIFESP. É autora do Livro Kilorias - Faça do #projetoverão seu estilo de vida (Editora Benvirá). Atualmente, atua como pesquisadora, desenvolvendo trabalhos científicos sobre obesidade, e tem um canal de desafios (30 Dias com Paola Machado) onde testa a teoria na prática. Também é fundadora do aplicativo aplicativo 12 semanas. CREF: 080213-G | SP

Sobre a coluna

Aqui eu compartilharei conteúdo sobre exercício e alimentação para ajudar você a encontrar o caminho para um estilo de vida mais saudável. Os textos são cientificamente embasados e selecionados da melhor forma possível, sempre para auxiliar no seu bem-estar. Mas, lembre-se: a informação profissional é só o primeiro passo da sua nova jornada. O restante do percurso depende 100% de você e da sua motivação para alcançar seu objetivo.