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Flávia Durante

Qual é a diferença entre pressão estética e gordofobia?

Flávia Durante

02/03/2018 05h00

As primeiras manifestações de ativistas gordos contra o preconceito em relação aos seus corpos datam do final dos anos 1960, nos Estados Unidos. No Brasil, o país do culto ao corpo, a luta contra o estigma vivido por pessoas gordas tem sido organizada há pelo menos dez anos. Porém há ainda muitas dúvidas sobre o que é gordofobia, embora o preconceito esteja muito presente na rotina dos brasileiros.

Para entendermos de vez o que é essa palavra e a diferença em relação a pressão estética, conversei com Marco Aurelio Domingos Magoga, ativista e pesquisador e autor do site "O Grande Close", sobre militância gorda.

Muitos pensam que gordofobia é apenas ser ofendido na rua ou na internet. Mas quem convive com essa questão sabe que vai muito além disso. Afinal, o que é?

Não é um sentimento e não é sinônimo de bullying. Gordofobia é uma aversão ao corpo gordo, que pode se manifestar de diversas formas. A mais comum e enraizada na sociedade é a desumanização das pessoas gordas por meio da consideração do corpo gordo como automaticamente doente e do corpo magro, como automaticamente saudável. É uma visão tão comum –aquela segundo a qual o corpo gordo precisa ser tratado e medicado para virar um corpo magro– que dizemos que a gordofobia é uma opressão estrutural, ou seja, toda a sociedade funciona e é pensada para corpos magros e para exclusão de corpos que fogem a determinado padrão "médio".

Qual é a diferença entre pressão estética e gordofobia?

Vivemos em um tempo que valoriza a imagem. E essa imagem precisa ter padrões irreais de se alcançar porque a insatisfação que ela causa nas pessoas leva ao consumo, e isso é essencial no sistema capitalista. Todo mundo sofre pressão estética, de uma maneira ou de outra. Mulheres em maior intensidade, porque, em uma sociedade machista, elas também são tratadas como produtos de consumo. Pressão estética é uma pressão social difundida majoritariamente pela mídia, que leva as pessoas a se sentirem insatisfeitas com seus corpos, sempre procurando se encaixar em um padrão (e esse padrão é magro).

Já a gordofobia é uma estrutura social, cujas bases estão no saber biomédico (a classificação de todo corpo gordo como doente, inclusive com atribuição de CID), na mídia (que se encarrega da propagação de obesidade como epidemia) e acaba chegando ao senso comum (todo gordo é preguiçoso, desleixado, doente). A gordofobia vai além de "não se sentir bonito", como acontece na pressão estética, ela afeta a forma como a sociedade funciona, porque, como eu disse, o mundo é projetado para pessoas magras.

"Após o banho", de Renoir (Imagem: Reprodução)

De que formas a gordofobia pode se manifestar?

Por meio da patologização, que nada mais é do que afirmar categoricamente que a gordura é uma doença ou a causa de doenças, mesmo sem um exame individualizado e pormenorizado. E da culpabilização, que é dizer que pessoas são gordas porque querem e que basta força de vontade pra que deixem de ser, e os problemas oriundos da gordofobia desapareçam. Ou seja, por considerar o corpo doente, coloca-se como responsabilidade da pessoa gorda emagrecer e se adequar ao mundo, em vez de pensar em maneiras de lidar com a diversidade de corpos.

Na prática, só para citar alguns exemplos que vão além de xingamentos e ofensas, temos falta de acesso a equipamentos públicos, como catracas de ônibus e macas de hospital, escassez de roupas e de mobiliário, menor oferta de empregos (tanto por acreditar que a saúde de pessoas gordas são bombas-relógio quanto por acreditar que não são esteticamente interessantes como uma pessoa magra, especialmente em trabalhos que envolvam atendimento ao público), entre outras coisas.

Os comentários de ódio aos textos de militantes antigordofobia, em geral, vêm de homens ou de ex-gordos. Por que você acredita que isso aconteça?

Porque, em uma sociedade machista, eles estão em posição privilegiada e, geralmente, não costumam reconhecer esse privilégio. Se for um homem hétero, branco e de classe média, então, mais difícil ainda. Quem não vive nenhuma opressão social, dificilmente, consegue reconhecer que outras pessoas vivem, porque acabam tendo uma visão muito individual do mundo. E a reação mais comum ao que a gente não conhece é o medo e o ódio irracional. Por isso há tanto ódio contra negros, contra pessoas LGBTQI+, contra mulheres, contra pobres, contra pessoas gordas… E esse ódio parte, principalmente, de homens privilegiados, acostumados a julgar todas as experiências das pessoas segundo os próprios padrões.

Sobre ex-gordos, qualquer pessoa que emagreça sem primeiramente entender como funcionam as bases da gordofobia está sujeita a propagar discurso de ódio. Porque somos ensinados a odiar nossos corpos e a aceitar a culpabilização desde muito cedo e, quando emagrecemos (seja por meio de dieta, de cirurgia ou qualquer outro método), encaramos como vitória e acabamos devolvendo o ódio recebido. Não há nada de errado em engordar ou emagrecer, mas encarar isso como uma virtude moral é um problema. Fora a expectativa que muitos têm em emagrecer como forma de solucionar todos os problemas e, quando chegam lá, veem que não é bem assim.

Vênus de Willendorf, estatueta estimada como esculpida entre 28.000 e 25.000 anos antes de Cristo

De onde vem o ódio às pessoas gordas?

O ódio é sempre multifatorial. Mas, se for para resumir, eu diria que vem de um desconhecimento histórico e da falta de noção do corpo como instrumento político. Nem sempre corpos gordos foram considerados ruins, pelo contrário, na Idade Média, eram celebrados e símbolo dos nobres. Depois da Revolução Industrial, tivemos uma forte proliferação do pensamento higienista, que estudava maneiras de corpos serem mais produtivos (especialmente para as longas jornadas de trabalho nas fábricas). Então a gordura passou a ser considerada como doença (acrescenta-se aí também um investimento pesado da indústria do açúcar na ideia de que a gordura era ruim e a verdadeira vilã da saúde) e o corpo gordo passou a ser considerado preguiçoso, feio, indesejado, sinônimo de falta de força de vontade. Veja, o corpo sempre teve uma associação com algum valor econômico. Até mesmo o fato de existir um padrão irreal de beleza se associa com a economia: gente infeliz gasta dinheiro tentando mudar as coisas em si própria. Entender que o ódio ao corpo gordo foi histórica e socialmente construído é essencial para se batalhar por mudanças nessa mentalidade.

Por que há poucos homens, principalmente heterossexuais, nessa luta? Até circulam memes dizendo que "homem gordo é legal" e a "mulher gorda é mimizenta". Teriam eles medo de serem vistos como fracos? Vejo que muitos sofrem com o preconceito, mas preferem fazer a piada primeiro antes de serem atacados.

Desde cedo, homens são ensinados a não demonstrar sentimento, a não reclamar, a serem fortes, viris e obstinados. Então, mesmo para homens gordos, a masculinidade pode ser um escudo para amenizar os impactos da gordofobia. Ele ainda vai entalar na catraca, vai receber apelidos, vai ter dificuldade com mobiliário, mas não vai lutar contra isso porque sempre aprendeu que "homem não tem frescura", "se não aguenta ser gordo vai para academia fazer dieta", "faça piadas e não demonstre fraqueza ou aborrecimento". Já com pessoas gordas mulheres, LGBTQI+, negros e qualquer outra minoria social é mais fácil desenvolver uma consciência em relação à gordofobia, porque essas pessoas já vivem outros tipos de discriminação e opressão no dia a dia. E da consciência para a luta contra essa opressão é apenas um passo. Não haverá grande quantidade de homens na militância gorda, enquanto não for questionado o modelo de masculinidade que aprendemos desde cedo.

Kelly Clarkson, no Globo de Ouro deste ano (AFP)

Sabemos que o meio gay cis também pode ser bem gordofóbico. Lembramos bem de piadas que já foram feitas com as cantoras Christina Aguilera, Kelly Clarkson, Mariah Carey e Lady Gaga quando elas engordaram.

Homens gays e bissexuais, por mais distantes que possam estar do modelo "ideal" heteronormativo de masculinidade, ainda estão inseridos em uma sociedade machista e podem reproduzir esse tipo de comportamento. A própria ação da lgbtfobia leva muitos LGBT a valorizarem a "perfeição estética" como forma de afirmação de sucesso, como se fosse um escudo contra a desvalorização e as chacotas sofridas ao longo da vida. Mulheres, sejam hétero ou LGBT, podem também reproduzir discurso gordofóbico, porque recebem, desde meninas, as mensagens que afirmam só ser bonita a mulher eternamente jovem, magra e branca. A pressão estética que mulheres sofrem podem levá-las a reproduzir comportamentos gordofóbicos, muitas vezes, sem que elas se dêem conta.

A autoestima hoje em dia virou sinônimo de beleza. Mas no meu entender ela rege vários aspectos da vida, não só o estético. Como cultivar a autoestima de uma forma saudável e múltipla, sem que ela fique só na superfície?

Há uma ideia muito equivocada quando se fala de autoestima: a ideia da obrigatoriedade de se sentir bonito. Beleza é um conceito muito subjetivo, e muito difícil de desenvolver em um mundo projetado para que NINGUÉM se sinta bonito e sempre aponte para possíveis "imperfeições a serem corrigidas". Por mais paradoxal que possa parecer, quando você se livra da obrigação de se sentir bonito, você se sente muito melhor com você mesmo. Uma boa maneira de cultivar a autoestima é buscando ser e fazer o que você ama, na medida do possível. Nem todo mundo pode ter o emprego dos sonhos ou grana pra viajar o mundo; nem todo mundo pode se vestir da maneira que se sente melhor e ninguém consegue ser feliz o tempo todo, como sugerem as redes sociais.

Mas a gente pode arrumar um tempinho para fazer nosso hobby favorito, pode convidar um amigo para tomar um sorvete (ou uma cerveja) no final do dia, pode tentar adaptar a maneira como a gente se apresenta ao mundo de modo a se sentir mais confortável e pode –e deve– se mostrar vulnerável e pedir ajuda quando preciso. Quando percebemos que não tem nada de errado com o jeito que a gente é, fica mais fácil até de se conhecer e buscar maneiras de se fazer feliz.

Quando questionamos a medicina muitos nos desafiam dizendo que não temos estudos para isso. O que você tem a dizer a respeito?

As pessoas tratam o saber biomédico como verdade absoluta sem se dar conta que, um, o conhecimento evolui e nenhum saber é imutável, e dois, o conhecimento é produzido por pessoas, e, invariavelmente, elas estão "presas" ao tempo histórico em que vivem, o que influencia, inclusive, a maneira como elas vão produzir saberes. Negros já foram considerados inferiores, e a escravidão foi justificada por meio de "estudos médicos imparciais". O mesmo se deu com os indígenas. Com homens e mulheres gays e bissexuais. Pessoas trans até hoje têm CID e precisam de diversos laudos médicos para terem direitos básicos de serem quem são.

E o mesmo acontece com pessoas gordas: a gente poderia argumentar eternamente sobre a metodologia de muitos estudos da obesidade (como, por exemplo, fazer generalizações a partir de amostras pequenas ou selecionadas a partir de doenças preexistentes), mas o principal a ser discutido aqui é: o que esse conhecimento tem gerado? Aumento indiscriminado nas cirurgias bariátricas, inclusive como muita gente se submetendo a um alto risco por motivos estéticos? Justificativa para barrar pessoas perfeitamente capacitadas para a função em concursos públicos baseando-se apenas em medidas ultrapassadas como o IMC? E a preocupação com acessibilidade, com produzir vestuário, mobiliário e equipamentos públicos para pessoas gordas (que representam uma porcentagem significativa da população)? Se o conhecimento produzido pela academia não tem servido para tornar a sociedade mais justa e igualitária, a que ele tem servido?

O livro de Gabrielle Deydier é best seller na França e motivou a criação do "Dia contra o preconceito de tamanho" (Imagem: Reprodução/YouTube)

Muitos confundem gordofobia e outras lutas identitárias como pautas da esquerda. Você tem conhecimento de como outros países lidam com a questão da acessibilidade, moda, saúde e mercado de trabalho para pessoas gordas?

Todo corpo gordo sofre gordofobia e isso por si só já derruba a ideia de ela ser uma pauta apenas "da esquerda". Infelizmente, a gordofobia não é privilégio de países como o Brasil. Há um livro de Gabrielle Deydier ("On Ne Naît Pas Grosse" ou, em tradução livre, "Não se Nasce Gordo"), que descreve justamente como as condições para pessoas gordas na França são adversas, e muito do que ela descreve é parecido com o que acontece aqui. Em países como os Estados Unidos há, pelo menos, uma oferta maior de vestuário e mobiliário a preços acessíveis para pessoas gordas, coisa que não acontece aqui.

Mas para mim a iniciativa mais interessante e que eu espero que um dia tenhamos no Brasil é um grupo acadêmico grande e robusto de estudos sobre pessoas gordas, como acontece no Reino Unido com a revista "Fat Studies". Aqui há algumas iniciativas nesse sentido (na Universidade Federal de Santa Catarina, por exemplo), mas é um movimento que pode crescer muito ainda, e estudar as pautas gordas academicamente é essencial.

Quais livros ou textos você indica para quem quer se aprofundar nessas questões?

Um livro que eu gosto muito é "As Metamorfoses do Gordo: a História da Obesidade", de Georges Vigarello. Tem o que eu citei anteriormente, "Não se nasce gordo", de Gabrielle Deydier. Uma dissertação que não sei se já foi publicada em livro, mas que me ajudou muito foi "Produção de Sentidos na Balança: as Relações entre Ciência, Mídia e Cotidiano nos Discursos de Obesidade", de Fabiano Marçal Estanislau . Para quem é fluente no inglês, sempre vale a pena ler os "Fat Studies", que são gratuitos . E mesmo que não seja diretamente sobre o corpo gordo, "A Metafísica do Poder" e "Vigiar e Punir", de Michel Foucault, são obras ótimas para entender melhor como a sociedade funciona nos dias atuais.

Como dar um toque para um amigo sobre ele estar sendo gordofóbico sem perder a amizade?

Toda pessoa pode evoluir, desde que esteja aberta a isso. Toda pessoa branca pode ter empatia e ser aliada contra o racismo, toda pessoa hétero pode ser aliada da causa LGBT, toda pessoa magra pode ter empatia com pessoas gordas. Pessoalmente, acho que uma boa maneira de dar um toque no amigo gordofóbico é compartilhando vídeos e textos que expliquem a questão de maneira didática. Em seguida, uma conversa franca com a pessoa sobre como seus comentários afetam pessoas gordas ao seu redor.

Se a pessoa, ainda assim, recusar-se a reavaliar o discurso, meu conselho é se afaste. Se não te faz bem, se te considera menos humano e menos digno de respeito só por ser gordo, não é amizade. Se afaste na medida do possível de qualquer relacionamento tóxico, seja com familiares, amigos ou colegas, porque não vale a pena. E às pessoas gordas: nessa época em que é tão fácil se relacionar e conhecer pessoas com interesses em comum de maneira virtual, procure grupos de militância gorda, crie uma nova rede de apoio, é possível desenvolver relações de afeto mais saudáveis, e todo mundo merece afeto.

Sobre a autora

Flávia Durante tem 41 anos e é comunicadora, DJ e empresária nascida em São Paulo e criada em Santos. Desde 2012 produz a Pop Plus, feira de moda e cultura plus size, com média de público de 10 mil pessoas por evento. Ao longo destes 6 anos tem desmistificado conceitos e conselhos que mulheres (e homens também) vem ouvindo há décadas sobre os padrões da moda.

Sobre o blog

Um espaço para falar de mercado e moda plus size, beleza, acessibilidade, bem estar e autoestima.

Blog da Flávia Durante