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Vivendo com Alzheimer: quando as filhas e netas se tornam mãe de suas mães

Bruna espalhou fotos no quarto da mãe, Geni, para que ela "se enxergue de novo" - Arquivo Pessoal/Marcia Kohatsu
Bruna espalhou fotos no quarto da mãe, Geni, para que ela "se enxergue de novo" Imagem: Arquivo Pessoal/Marcia Kohatsu

Aline Takashima

Colaboração para Universa

21/09/2019 04h00

Geni de Oliveira Pereira dorme e acorda rodeada de retratos. São fotos de quando era criança, dos filhos, irmãos e netos e também um certificado de corte e costura de 1970, seu ofício durante toda a vida. As imagens foram emolduradas e organizadas pela filha mais velha, a fotógrafa Bruna Kamaroski. São lembranças que cobrem as paredes do quarto da costureira. A intenção da filha é que a mãe "se enxergue de novo" toda a vez que se deparar com estes "registros de memória", como chama.

Geni foi diagnosticada com mal de Alzheimer, a causa mais comum de demência. É uma doença degenerativa que atrofia o cérebro, causa perda de memória e habilidades cognitivas. Ela é uma dentre 1,2 milhão de brasileiros que convivem com a doença, segundo a Associação Brasileira de Alzheimer. De acordo com a pesquisa Global Burden Disease, as mulheres são maioria. Representam 59,2% dos casos no Brasil.

A costureira trabalhou durante 15 anos em uma loja de costura, em um shopping em Curitiba. Sua trajetória foi árdua. Estudou até a terceira série. Só aprendeu a escrever o seu nome e dos filhos. Mas isso não a impedia de aproveitar a vida. Tinha muitas amigas. E não abria mão de um baile nos finais de semana. Até o dia em que foi demitida do emprego. A gerente a chamou de "burra e analfabeta" antes de mandá-la embora. O que gerou uma revolta na família e uma grande tristeza em Geni. Bruna processou a empresa e a mãe ganhou a causa. Mas a dor dos insultos acompanharam o dia a dia da costureira.

Ela deixou de conversar com os amigos. E foi se isolando em seu mundinho. Começou a trocar o nome dos parentes e a esquecer lembranças recentes. Ninguém desconfiou que era um sintoma do Alzheimer que acomete, em sua maioria, idosos a partir de 65 anos. Geni recebeu o diagnóstico da doença em 2016, aos 57 anos. Ela embaralha as lembranças e esquece de episódios recentes. Também perdeu a noção espacial. Não sabe mais chegar no banheiro de casa. Mas se lembra de Bruna, a sua primogênita, o seu porto seguro. "Eu me tornei mãe da minha mãe", resume a fotógrafa. Ela é quem cuida da alimentação de Geni, e é responsável pelas consultas médicas.

A filha se transformou durante os quatro anos convivendo com a doença da mãe. A mudança reflete no seu trabalho, como fotógrafa de casamentos. "Depois da doença, comecei a enxergar mais que noivos. Eu vejo avós e netas, pais e mães. O que importa de verdade. Consigo ir mais a fundo em uma história por meio da fotografia." O maior desafio que enfrentou até agora foi entender a trajetória da própria mãe. Hoje, Bruna aceita a doença, e se alegra com as pequenas conquistas do dia a dia. O olhar de Geni geralmente se perde no horizonte. É vago e distante. Mas, de vez em quando, encontra os olhos da filha e abre um sorriso. "Quando minha mãe tá feliz, ela me vê. Isso me motiva a continuar."

Música todos os dias

Vanessa e Olga com Alzheimer - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Vanessa criou uma playlist com as canções preferidas de Olga
Imagem: Arquivo Pessoal

Vanessa Bencz acordava a sua avó Olga com música todos os dias. Ela criou uma playlist com as canções preferidas da matriarca. "Meu ursinho querido, meu companheirinho, ursinho Pimpão", cantava enquanto abria a cortina do quarto de Olga ou preparava o café da manhã. A avó tocava as melodias no piano ou violão quando Vanessa era criança. Mas, nos últimos nove meses de vida de Olga, a função era da neta. Os olhos da senhora de 90 anos brilhavam quando escutava a canção saudosa. Por isso, Vanessa fazia questão de encher a casa com música -- para a avó não esquecer.

Olga foi diagnosticada em 2014. Ela recebeu os cuidados da sua neta Vanessa, que decidiu, por conta própria, dar um tempo na carreira de jornalista para se dedicar exclusivamente à avó.

Olga era o alicerce da família. Comandava uma imobiliária, em Joinville, Santa Catarina. Criou o negócio sozinha no início da década de 1990. Estudou piano até os 80 anos. Também tocava violão. "A música alimenta a alma", repetia sempre. Vanessa conta que a avó não fazia o tipo fofinha e bonitinha. "Era poderosa, autoritária e muito forte." Essa força influenciou a neta a superar percalços, como depressão na adolescência, bullying na escola e episódios de automutilação. Na época, Olga sugeriu que Vanessa consultasse um psicólogo. Aos 14 anos, a neta foi diagnosticada com Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDHA). Mesmo que isso não impedisse as chacotas dos colegas, ela encontrou recursos para viver bem consigo mesma.

Outras mulheres da família também sofrem com a doença. A mãe de Vanessa é uma delas, e a avó frequentemente visitava psicólogos e psiquiatras. Uma decepção amorosa mudou os rumos da vida de Olga. Em 1986, Pedro, seu marido, se apaixonou pela secretária e foi morar em outra cidade. A partir daí, ela começou a tomar um remédio fortíssimo para dormir sem prescrição médica.

Antes pensava-se que mais mulheres desenvolviam o Alzheimer porque viviam mais tempo que os homens, aponta a Alzheimer's Association (Associação Americana de Alzheimer). Hoje, sabe-se que fatores biológicos, genéticos e o estilo de vida modificam a forma como a doença se desenvolve entre ambos os sexos. Um estudo da British Medical Journal Open revela que as mulheres que enfrentam depressão ou eventos estressantes como divórcio, morte de um parente ou doença têm mais probabilidade de desenvolver demência que os homens. Graças a uma proteína tóxica chamada tau, que se desloca entre os neurônios mais facilmente nas mulheres que nos homens, e se espalha como uma infecção pelo cérebro.

Olga nunca aceitou a separação do marido. De vez em quando, perguntava: "cadê o Pedro?". Mesmo com os dias cheios de afeto e cuidados, Vanessa acompanhou a doença avançar. "Percebi a vó Olga mergulhando num lugar misterioso em que ela era criança e não reconhecia mais sua família. É triste demais reparar que ela direcionava o olhar para mim e não me reconhecia; eu me tornei para ela um quarto com a luz apagada." Certos momentos eram difíceis, como na hora do banho. Olga brigava e batia na neta e nas enfermeiras.

Mas, os episódios bons compensavam os ruins. Em momentos de lucidez, o rosto da avó se iluminava quando olhava para Vanessa: "Nessinha! Bonequinha da vovó!", e a casa se transformava em festa. Olga morreu no dia 24 de julho, em um dia ensolarado, em sua casa. "Apesar das dificuldades, eu digo que amem, cuidem e protejam as pessoas com Alzheimer. Eles não são agressivas e teimosas porque querem. Se eu ficar doente, quero que alguém me proteja do jeito que eu amei a minha avó".

Encontrando caminhos

Melina e Eliana que tem Alzheimer  - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Eliana fala poucas palavras. Ela teve o diagnóstico de Alzheimer aos 60 anos
Imagem: Arquivo Pessoal

Melina Savi e a sua mãe são melhores amigas. Desde criança, Melina conta com ela para tudo. É a sua confidente e conselheira. Hoje, as conversas acontecem de uma outra forma, pelas vias do afeto. A sua mãe fala poucas palavras. Mas fica de mãos dadas com a filha enquanto escuta Melina ler ensinamentos de budismo. As duas também se encontram nos sonhos da filha. Eliana Ternes Pereira tem Alzheimer há 10 anos. Nunca aceitou o diagnóstico descoberto aos 60 anos. Mas também nunca relutou em contar com ajuda.

Desde que a doença foi descoberta, Melina praticamente se mudou para a casa da mãe. Ela escreveu a sua pesquisa de doutorado em Estudos Culturais em Língua Inglesa, em um escritório na casa de Eliana. "Eu sentia uma responsabilidade muito grande. Como se tivesse que salvar e curar a minha mãe. Dizia que ela ia sair dessa", desabafa. Quando as memórias começaram a escapar de dentro de Eliana, ela descreveu para a filha como é conviver com o Alzheimer: "É como se meu cérebro fosse tomado por nuvens".

As lembranças mais queridas das quais Melina se orgulha foram embora ou se esconderam dentro da mãe. Eliana trabalhou como médica endocrinologista e geneticista. Foi professora na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis e a primeira profissional do Hospital Universitário a ter pós-doutorado. Aos olhos de Melina, sua mãe é corajosa, destemida e livre. Daí a dificuldade em lidar com a doença. O Alzheimer afeta as mulheres de várias formas. De acordo com a Alzheimer's Association (Associação Americana de Alzheimer), existem 2,5 mais mulheres do que homens que cuidam de pessoas com demência.

Chegou um ponto em que Melina se viu esgotada. "É emocionalmente exaustivo cuidar de alguém com Alzheimer. No fim, eu só estava perdendo". E não era só a mãe e a filha que sofriam. A cuidadora também. Melina dava apoio para a mãe e para ela. "É uma profissão difícil. As cuidadoras estão o tempo todo com alguém que repete tudo, tem crises de mau humor e violência". Desde o começo do ano, a família de Eliana optou por interná-la em um lar de idosos. A culpa atormentou Melina diante da decisão. "Eu tinha os mesmos preconceitos que a sociedade tem. Como se estivesse abandonando a minha mãe."

O sentimento logo passou quando viu Eliana num ambiente seguro e tranquilo, de mãos dadas com uma amiga muito parecida com a mãe, com o mesmo nome. A instituição é privada e conta com aulas de arte-terapia, samba, coral e consultas médicas. Com o avanço da doença, Melina encontrou caminhos para lidar com a situação por meio da literatura. A filha lembra que quando era adolescente, Eliana a presenteou com um poema do americano John Greenleaf Whittier que dizia assim: "Quando as coisas dão errado, como às vezes dão / quando a estrada que você caminha é íngreme / descanse se for necessário, mas não desista".

A jornada é longa. Mas, após uma década, Melina se livrou da vontade de salvar a mãe a qualquer custo. "A leitura é uma de sobreviver. Uma ferramenta para gente encontrar a nossa humanidade, desejos e medos. Descobri que tenho aliados, pessoas que passaram por situações parecidas", explica. A doença de Alzheimer, por enquanto, não tem cura. Os tratamentos atuais não impedem a progressão da demência. Mas retardam temporariamente o agravamento dos sintomas. "A gente quer que as coisas boas permaneçam e que as ruins nunca cheguem. O único jeito é aceitar que a estabilidade e a permanência não existem. É ficar confortável nessa incerteza".