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Por que a moda e a beleza estão ampliando o conceito de "cor de pele"?

Em 2016, a Louboutin ampliou sua cartela de nudes para abraçar consumidora até então esquecida: a negra - Divulgação
Em 2016, a Louboutin ampliou sua cartela de nudes para abraçar consumidora até então esquecida: a negra Imagem: Divulgação

Natália Eiras

Da Universa

05/07/2019 04h00

A designer Julia Gonçalves, 24, gostava de esmaltes discretos. Como não encontrava nenhum que "desaparecesse" em seu tom de pele, costumava usar o preto. "Se procurasse um 'nude', acharia apenas tons rosados, bem claros, que não ficariam bons para mim", conta para Universa. A produtora de eventos Raquel Natal, 33, por sua vez, evitava usar roupas brancas quando era mais nova. "Não existia lingerie da minha cor, então as que eu usava ficavam marcando", narra. Meia-calça também era um problema. "Se eu usasse a meia fina 'natural', as pernas ficavam esbranquiçadas. Se fosse a 'tabaco', ficavam mais escuras que o resto do corpo", diz.

Essas situações podem não fazer parte da história de muitas pessoas, mas 55,4 milhões de mulheres negras ou pardas conhecem bem como é chegar a uma loja de roupa ou de maquiagem e não encontrar um "nude" para chamar de seu. Apesar de a população ser, em sua maioria, negra e parda -- 54% de acordo com o IBGE --, ainda há, de acordo com especialistas, poucos produtos pensados para tais tons de pele. "A gente se sente muito perdida, excluída. É como se não conseguisse fazer parte de um grupo no qual gostaria de estar. Quando eu era mais nova, não entendia por que não tinha nada no tom da minha pele", fala Júlia.

Julia Gonçalves, 24, tinha dificuldades em encontrar esmalte que fosse "nude" em sua pele - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Julia Gonçalves, 24, tinha dificuldades em encontrar esmalte que fosse "nude" em sua pele
Imagem: Arquivo Pessoal

De acordo com Fernando Montenegro, fundador da consultoria de consumo Think Etnus, o mercado não olhava para essa população por causa do racismo estrutural. "A mulher negra usava o que havia à disposição. A sociedade acreditava que ela tinha que se virar com o que já existia", diz. Nina Silva, cofundadora do movimento Black Money, que apoia afroempreendedores, afirma que essa mentalidade beira a burrice. "As empresas perdiam a oportunidade de ampliar o próprio mercado, porque não se atentavam às necessidades dessas pessoas". No entanto, o jogo está virando. "Elas estão percebendo que precisam, com urgência, falar com afrodescendentes para não se tornarem obsoletas", diz Nina. "Ter um olhar mais etnicamente amplo é um fator de inovação, assim como foi a sustentabilidade", complementa Fernando.

Mas de onde vem o conceito de "cor de pele"?

Vamos voltar à sala do jardim de infância. Quando fazíamos o desenho de uma pessoa, qual era a cor do lápis que você usava para pintar a pele? Há grandes chances de você ter pensado no lápis bege ou no salmão.

Desde pequenos, aprendemos que o ser humano padrão é branco. "É um olhar que vem da Europa, de que tudo o que não vem de lá ou que não seja do homem caucasiano é fora do comum", diz Nina. A escritora e militante negra Stephanie Ribeiro afirma que isso afetou a nossa percepção do mundo. "Tudo o que não é branco, é exótico. E como nós entendemos a pele branca como o padrão de normalidade, há o desenvolvimento de uma série de produtos para atender a essas tonalidades. Desde uma sapatilha de bailarina até bases de maquiagem", fala.

De acordo com estudo da Think Etnus, 50% das mulheres negras têm dificuldade em comprar adequadamente maquiagem e, por isso, elas gastam três vezes mais na compra de produtos. "Não é por ela ser consumista, e sim por ter dificuldade em encontrar base e corretivo na tonalidade dela. Então acaba misturando mais de um produto", fala Fernando Montenegro.

Todas as mulheres entrevistadas nesta reportagem tiveram dificuldade em lidar com a maquiagem. Não se identificar com o que está disponível nas prateleiras das lojas mexe com a autoestima dessas consumidoras. "É como se eu não existisse. Fiquei emocionadíssima quando encontrei um filtro solar com cor que servisse para mim", fala Stephanie. "Acham que preta não se protege do sol."

A primeira linha de MAPA Lingeries teve quatro tonalidades de "nudes": duas para pele branca e duas para pele negra - Divulgação - Divulgação
A primeira linha de MAPA Lingeries teve quatro tonalidades de "nudes": duas para pele branca e duas para pele negra
Imagem: Divulgação

Pequenas empresas, novas tonalidades

A administradora Rosângela José, 40, de Angra dos Reis (RJ), gosta muito de maquiagem. É por isso que, desde 2010, mantém um canal no YouTube de maquiagem para a pele negra. Em 2017, no entanto, a empresária mudou a vida de outras mulheres ao lançar bases em seis tonalidades escuras em sua marca, a Negra Rosa. "Até hoje recebo mensagens, inclusive de mulheres mais velhas, dizendo que nunca usavam maquiagem porque não queriam ficar esbranquiçadas, mas que agora finalmente encontraram um produto para elas", conta. Ela chega a chorar de emoção. "Para muita gente é uma coisa banal, mas essas mulheres não têm uma relação naturalizada com a maquiagem. Eu mesma comecei a usar produtos tardiamente. Ver outras pessoas se libertando e criando uma relação com a própria beleza é muito importante para mim."

Gerusa Gama, 33, criou a MAPA Lingerie porque não encontrava um "nude" para chamar de seu - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Gerusa Gama, 33, criou a MAPA Lingerie porque não encontrava um "nude" para chamar de seu
Imagem: Arquivo Pessoal

A marca Negra Rosa nasceu da experiência pessoal de Rosângela. Este caminho é, de acordo com Nina Silva, bastante comum. "São mulheres afro que, a partir de uma necessidade própria, correm atrás para atender todas nós." Foi o que também fez a estilista Gerusa Gama, 33, de Divinópolis (MG), fundadora da M.A.P.A Lingerie.

O primeiro lançamento da etiqueta, em 2016, foi uma linha de básicos em quatro tonalidades de nude: duas para a pele clara e duas para a pele escura. "Como mulher negra, nunca encontrei uma lingerie que sumisse na minha pele. Então, criei o meu próprio nude e vi que outras mulheres pretas se encontraram na marca", fala. No último verão, Gerusa também apostou no bordado. "Queríamos algo bonito que atendesse a todo mundo, do P ao GG", afirma. Stephanie é uma das clientes da M.A.P.A. "Fico muito feliz por ter um sutiã de renda, da moda, que é da cor da minha pele."

Sentindo no bolso

Nina Silva fala que, ao ver uma boa parte de consumidoras optando por marcas menores, junto com o barulho nas redes sociais para que as marcas atendam a todos, é inevitável os gigantes do mercado se mexerem. "Eles começam a sentir no bolso, então percebem que precisam mudar para continuar crescendo." Por isso, nos últimos anos houve um "boom" de marcas ampliando suas paletas. É o caso, por exemplo, da Christian Louboutin, que passou a usar novos nudes em seus escarpins e sapatilhas; de O Boticário, que aumentou o portfólio de bases e corretivos da linha Make B; e da Shoestock, que lançou a Naked Collection, com seis tipos de nude.

A Shoestock lançou a Naked Collection, linha com diferentes tonalidades de "nude" - Divulgação - Divulgação
A Shoestock lançou a Naked Collection, linha com diferentes tonalidades de "nude"
Imagem: Divulgação

Graciele Kumruian, porta-voz de diversidade da Netshoes, grupo do qual a Shoestock faz parte, diz que ampliar a cartela de "tons de pele" de seus calçados é proporcionar poder de escolha e mostrar o posicionamento da marca. "Queremos realçar que nos importamos com cada uma das consumidoras que vestem os produtos", justifica a executiva em entrevista para Universa.

De acordo com estudo do Instituto Locomotiva, a população negra brasileira movimenta cerca de R$ 1,7 trilhão ao ano. E, para esse grupo de consumidores, a identificação com a marca é fato decisivo de compra. "Pessoas pretas estão dispostas a pagar até 30% a mais em um produto se elas acreditam que ele foi pensado para elas", afirma Nina Silva. Mas para que essa "lealdade" se dê a longo prazo, é preciso incluir afrodescendentes na cadeia produtiva e em posições de decisão das marcas. "Caso contrário, será uma inclusão da porta da firma para fora, e o consumidor percebe", diz.

Algumas pessoas até podem dizer que tal movimento é uma espécie de oportunismo do mercado. "Não somos inocentes, sabemos que as empresas não estão nos fazendo um favor", pondera Stephanie. Mesmo com o olhar cético, ativistas e consumidoras comemoram o fato de as coisas estarem mudando. "Se é para vivermos em uma sociedade baseada em consumo, que isso seja feito da forma correta. Que todas nós possamos ter acesso aos produtos que queremos, não ao que tem aí", completa a escritora.