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Blog da Lúcia Helena

Meu dia deveria ter 35 horas para eu levar a tal “vida saudável”

uol

23/11/2017 04h20

Crédito: iStock

Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço, sabe aquela história? Ela é a minha cara. Não que tenha contado aos leitores alguma bela mentira. Bem, talvez tenha propagado "verdades transitórias", expressão que os cientistas usam para nos dizer algo como "engano, não era bem assim, a ciência avança e você pode voltar a comer ovo". Mas essa é uma conversa para outro dia. Agora quero observar uma questão de tempo. O tempo consumido para ser saudável.

Começa logo cedo. Não adianta engolir ligeiro aquele café preto, já ouviu esta? O corpo ficou horas em jejum, sem nadica para abastecê-lo. Preciso, então, de meia horinha só para preparar uma refeição matinal como manda o figurino e aproveitá-la com a calma das manhãs em uma novela de televisão. Mas o dia está só iniciando.

Posso sair a pé para o primeiro compromisso. Ou ir ao parque, à academia, a qualquer canto em que mexa  o corpo. Quem recomenda é a Organização Mundial de Saúde, quer autoridade maior? Segundo o povo da OMS, pessoas entre 18 e 64 anos, bem na minha faixa,  precisam de 30 minutos de atividade física moderada em cinco sessões semanais ou de 75 minutos de exercício vigoroso duas vezes por semana. Fácil? Que nada!  Se desejo benefícios pra valer, a meta é o dobro: uma hora por dia, cinco vezes por semana. Acabou? Não! Mais 15 minutos diários de alongamento, sem contar a musculação, outras três vezes por semana.

Vale somar os longos rituais para ter pele saudável, cabelos saudáveis, unhas saudáveis (ora, quem nunca?). Escovação de dentes é caso à parte, questão de higiene, passando pacientemente o fio dental sem pular nenhum espaço. E o dia, que nessa altura precisaria ter começado mais cedo, segue.

Nele, a gente deve se lembrar de tomar água a todo instante. E de criar pausas no meio do expediente, porque elas diminuem o estresse (oba!). Na verdade, o ideal mesmo seria fazer algo como 30 minutos de meditação (quem sabe um dia…).

O almoço? O Guia Alimentar Brasileiro reforça que as refeições, incluindo dois lanches, não podem ser devoradas em um zás-trás. Até porque precisamos de porções generosas de vegetais no prato (delícia!). Só que eles exigem mais da mastigação. Aliás, pelo menos 7 em cada 10 refeições deveriam ser feitas em casa (sonho meu…). Será que consigo ao menos levar a minha comida para o trabalho? Ok, mas daí quero um tempo para cozinhá-la. E para deixar pronto o lanche dos filhos. Abrindo, claro, brecha para o passeio com a minha border collie (já que tenho cachorro, melhor cuidar da saúde dele também).

Faço questão de dar um jeito de ir à feira orgânica. Não posso entrar e sair do supermercado sem ler o rótulo dos alimentos. Ainda vou correr atrás daquele suplemento, daquele grão vindo nem sei de onde, checar se tudo na caixa de remédios de casa está na validade e talvez passar na farmácia (ufa!). Não posso abrir mão das consultas periódicas, de fazer exames e tomar vacina, de cavar espaço para a ida ao dentista (opa!).

Levo em conta que trabalho um bocado (você provavelmente estuda ou trabalha também) e mereço dormir umas oito horas. Devo contabilizar dez, porque falam pra gente se desconectar cerca de duas horas antes. E agora? É… Eu ainda não consigo colocar tanta coisa no meu dia. Empurro parte da minha "agenda saudável" para as noites, que então ficam mal dormidas. Tiro no pé.

Mas, admito, sempre sugeri aos leitores que fizessem tudo isso. Não sei se eles se viraram nos 30 e seguiram à risca. E nem venham culpar a tal da mídia, sozinha, pelo sufoco. Vivemos em um mundo em que todos têm uma receita, com seu tempo maior ou menor de preparo, por assim dizer, para alguém alcançar a tal da vida saudável. E esse receituário se espalha pelas redes num picar de olhos. Se seguirmos  tudo o que ouvimos, lemos, assistimos, não, a conta nunca fechará nas 24 horas. Aí vem o peso na consciência por não cumprir essa prova de autoestima,  de que você se ama e… Danou-se: sessão de terapia para resolver a culpa, uma coisa a mais se espremendo para entrar na rotina.

Penso que é como mentir e contar outras dez mentiras depois para sustentar a primeira. Neste mundo que anda rodando esquisito, abandonamos pequenas atitudes, fáceis ou até naturais. E,  por isso, precisamos de outras tantas medidas para compensar, que custam tempo, dinheiro e energia. Noutro dia, eu estava em uma palestra e disseram para a gente se manter de pé pelo menos cinco minutos a cada hora. Isso  seria tão importante  quanto treinar na academia. Mas aí eu pergunto: não é espantoso  existir um estudo científico para nos apontar a importância de apenas ficar em pé? Poxa, estamos em pé desde que deixamos de ser macacos! A notícia deveria ser velha, caros cientistas. E, no entanto, soa à novidade porque deixamos de fazer coisas óbvias. Também me espanto quando noto que escrevemos sobre o valor de parar para comer,  dormir,  sentar-se à mesa com amigos e, enfim, apenas viver bem.

É por a gente tratar desse "básico 1" como fosse perda de tempo que corremos atrás do prejuízo. E, pior, estamos sempre atrasados nas tarefas já que — vamos combinar? — haja compromisso para recuperar nossos sutis descuidos com a saúde. O bom seria a vida saudável caber na vida da gente.  Pedir demais? E é por essa razão que estou encantada por escrever para o VivaBem, plataforma que, diante de tudo, se torna pra lá de diferente, reconfortante e ousada.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.