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O que eu, a Lea T, a Ivana e talvez você temos em comum

Angélica Morango

11/07/2017 04h00

Lea e o pai, Toninho Cerezo, em entrevista ao Bial. (Foto: Divulgação)

 

"Quando eu me descobri, não sabia se meus pais me aceitariam". A autora dessa frase é a modelo Lea T. Mas poderia ser um desabafo meu, talvez seu. E, com certeza, de milhares de pessoas mundo afora.

Lea se descobriu trans. Eu, lésbica. São coisas diferentes, mas com muito em comum. Transexual, numa explicação simplista, é uma pessoa que nasce num gênero, no caso dela o masculino, mas se identifica e tem a sensação de pertencer a outro, o feminino, e passou por todo um processo hormonal e cirúrgico para essa transição. Eu nasci menina, me identifico como o sexo feminino, nunca tive vontade de ser homem, mas sempre senti atração por mulheres.

Pela primeira vez falando sobre transexualidade junto com o pai num programa de tevê, o Conversa com Bial, Lea contou que se sentia diferente e insatisfeita quando, ainda menino, encarava o espelho. Adulta, ela temia não só a reação da família, mas da sociedade, que impele muitas transex as ruas e à prostituição. Toninho Cerezo, o pai, ex-craque da seleção brasileira de futebol, contou que já imaginava que o filho pudesse ser gay, mas que levou um tempo até compreender sua transexualidade. Emocionado no talk show, ele se declarou para a filha: "A sua família não ia te abandonar nunca".

Me identifico com a Lea porque conheço essa realidade. Esconder da família o que sentimos é sufocante. Enquanto não contei sobre mim, levei uma vida dupla. Mentia sobre os telefonemas que recebia em casa. Mentia sobre os lugares que ia e com quem. Uma parte de mim era feliz, a outra se despedaçava.

Sou filha de pais divorciados. Contei sobre minha homossexualidade pra minha mãe quando tinha 17 anos e ela surtou. Fez um escândalo na porta de casa, depois um alvoroço na porta do meu trabalho. Nossa relação, que já não era, boa foi cortada de vez. Ao meu pai só contei aos 23, pela internet, porque temia outra reação extremada. Passamos dois anos sem muito contato, conversando apenas o necessário.

Eu e a vó Felicidade, no meu aniversário de 23 anos. (Foto: Arquivo pessoal)

 

Até que eu entrei no Big Brother Brasil e, no primeiro dia na casa, falei abertamente com o Bial sobre ser lésbica. A minha avó, que é o xodó da minha vida e não à toa se chama FELICIDADE, ficou sabendo naquela hora, pela televisão. Nunca tinha tocado no assunto antes porque eu não suportaria abrir mão da minha relação com ela, que sempre foi meu alicerce. Perdê-la me deixaria sem chão.

Entrar no reality e mostrar quem realmente era, foi meu maior desafio até aquele momento. E a minha avó esteve lá na arquibancada vestindo a camisa com a minha foto nos dois paredões que enfrentei. E quando fui eliminada no programa, ela se declarou: "Filha, a vó te ama de qualquer jeito e vai estar sempre do seu lado". Nenhum prêmio poderia ser mais valioso pra mim.

Cena entre Ivana e Joyce da novela "A Força do Querer". (Foto: Divulgação)

 

Anos se passaram e nunca se falou tanto sobre sexualidade quanto agora nos programas de tevê, nas novelas, na internet, nas revistas… E o que ganhamos com isso? Uma sociedade mais instruída e consciente. A homossexualidade, a transexualidade, o gênero fluido e todas as diferentes identidades de gênero – que chegam a 31, segundo dados da Comissão de Direitos Humanos de Nova York – devem ser conhecidos e reconhecidos. Para que coisas simples do dia a dia, como o acesso fácil a banheiros públicos ou a utilização do nome social ao invés do oficial, sejam entendidas como necessidade e não privilégio.

Por mais "Leas", mais programas e mais diálogo, porque no fundo o que precisamos é de uma boa conversa. E ela pode acontecer a partir de uma cena de novela, por exemplo.

Nos próximos dias o conflito entre Joyce e Ivana, mãe e filha transexual interpretadas pelas atrizes Carol Duarte e Maria Fernanda Cândido em A Força do Querer, da Globo, ficará mais intenso. O folhetim também mostra a rotina de um travesti transformista, vivido pelo ator Silvero Pereira. Com histórias impactantes, bom texto e elenco afinado, a novela de Glória Perez cativou o público e recuperou a audiência do horário nobre, sendo a mais vista dos últimos quatro anos. Algo me diz que estamos no caminho certo.

Sobre a autora

Ana Angélica Martins Marques, a Morango, é mineira de Uberlândia, jornalista, fotógrafa e DJ. É também autora do livro de contos Quebrando o Aquário. Passou pela décima edição do Big Brother Brasil e só foi eliminada porque transformou o temido quarto branco no maior cabaré que você respeita. É vegetariana e cuida de três filhos felinos: Lua, Dylan e Mike.

Sobre o blog

Um espaço para falar de amor, sexo, comportamento feminino e feminismo com leveza e humor. Tudo sob o olhar de uma mulher esperta, que gosta de mulheres tão espertas quanto ela!