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"Déficit de natureza" provoca problemas físicos e mentais em crianças, alerta especialista

Louv acredita que a situação só vai mudar se convívio com a natureza for encarado como algo fundamental, como parte dos Direitos Humanos - Divulgação
Louv acredita que a situação só vai mudar se convívio com a natureza for encarado como algo fundamental, como parte dos Direitos Humanos Imagem: Divulgação

26/06/2016 12h14


Basta um olhar rápido para perceber que nas grandes e médias cidades o contato das crianças com a natureza, em geral, vem diminuindo.

E para o americano Richard Louv, autor de "A Última Criança na Natureza", essa constatação em nada tem a ver com um saudosismo barato. Mas sim com os impactos negativos causados pelo que ele chama de "Transtorno de Déficit de Natureza".

Em visita a São Paulo para o lançamento de seu livro, Louv contou à BBC Brasil que ele começou a se interessar pelo tema no início dos anos 90, quando fazia pesquisas para seu livro "Childhood's Future" (O Futuro da Infância, em tradução livre do inglês).

"Entrevistei mais de 3.000 pais e professores. Queria saber deles sobre como o cenário da infância estava mudando. E uma constante nos depoimentos foram pais reclamando de que não conseguiam tirar seus filhos de casa. Mesmo se morassem perto de áreas verdes ", disse.

"Na época, não havia estudos sobre a aflição desses pais. Somente há menos de dez anos surgiram as primeiras pesquisas sobre isso - e todas apontam para a mesma direção: a falta de contato das crianças com a natureza causa problemas físicos, como a obesidade, e mentais, como depressão, hiperatividade e déficit de atenção."

Louv, no entanto, vai além do cenário triste que pinta para as crianças dos dias atuais: ele também aponta medidas simples que pais, educadores, médicos e o poder público podem adotar para evitar o "déficit de natureza" até mesmo em grandes metrópoles. Confira os principais trechos da conversa:

BBC Brasil: Ainda há esperança para as crianças que vivem em cidades como São Paulo ou outras do estilo "selva de pedra"?

Richard Louv: (Risos). Sim, é claro que há esperança! Vi experiências muito interessantes em cidades na China e também em Atlanta, Chicago e em outras metrópoles americanas que podem ser comparadas com as brasileiras.

São escolas e associações que estão usando hortinhas, caminhadas em bosques e outras soluções simples para combater uma série de novos problemas que atingem muitas das crianças de hoje, por estarem tão afastadas da natureza.

BBC Brasil: Quais exatamente são esses novos problemas? São físicos ou mentais?

Richard:
Os dois. Na parte física temos, por exemplo, a obesidade infantil, que hoje é epidemia em vários países mundo afora, inclusive, até onde eu sei no Brasil. (47% das crianças brasileiras têm com excesso de peso ou são obesas).

As crianças hoje passam menos horas ao ar livre e, consequentemente, mais tempo confinado em casa, vendo TV ou jogando videogame. Essa é uma das grandes causas da obesidade infantil. Meninos e meninas que ficam na frente de telinhas são menos ativos do que os que correm no parque, sobem em árvores...

BBC Brasil: E os transtornos psicológicos?

Richard: São muitos e são novos. Porque, poucos anos atrás, era raro os pediatras atenderem crianças bem novas com sintomas de depressão. Também posso citar o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), além de problemas cognitivos.


BBC Brasil: Como a natureza pode amenizar esses problemas?

Richard: Hoje, há muitos estudos mostrando que contato com a natureza - ainda que pequeno e por pouco tempo - podem reduzir os sintomas desses distúrbios.

Uma pesquisa de um grupo na Universidade de Chicago que estuda distúrbios de atenção entre crianças comprovou que meninos e meninas de cinco anos tiveram uma melhora significativa com caminhadas curtas em parques.

Pesquisadores da Universidade de Essex também mostraram impactos psicológicos mensuráveis em adultos depois de apenas cinco minutos andando entre árvores. Porque adultos, obviamente, também se beneficiam do contato com a natureza.

BBC Brasil: Você acha que conviver com a natureza é mais eficiente do que receitar remédios?

Richard:
Veja, não estou dizendo que remédios como a Ritalina (usado para o tratamento de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, por exemplo) são ruins. Eles podem ser muito úteis para alguns casos.

Mas quando se têm escolas nos EUA em que 30% dos meninos tomam Ritalina, sabemos que algo não está certo. E os pediatras sabem disso. [O Brasil é o segundo maior consumidor do medicamento no mundo, com cerca de 2 milhões de caixas vendidas em 2010 - um aumento de 775% na última década, segundo a Anvisa.]

BBC Brasil: Sabem mesmo?

Richard: Acredito que muitos estão passando a se dar conta disso. E vejo cada vez mais profissionais começando a prescrever "brincar no parque". Prescrever mesmo, por escrito.

Em algumas partes dos EUA, por exemplo, associações de médicos começaram a usar dados com mapeamento das áreas verdes de suas cidades. Assim, dizem para os pais "tem um bosque a duas quadras da sua casa, portanto não há desculpas para levar seu filho lá duas vezes por semana."

BBC Brasil: E o que exatamente acontece com essas crianças que são taxadas, corretamente ou não, de hiperativas quando elas passam mais tempo em áreas verdes.

Richard: Essa mudança costuma ser visível e rápida. Vou dar um bom exemplo. Recebo muitos comentários de professores que passaram a incluir mais passeios ao ar livre em suas turmas.

E, juro, perdi a conta de quantos professores me falaram exatamente a mesma coisa, com praticamente as mesmas palavras: "Richard, é impressionante. Meu aluno que é encrenqueiro na classe se transforma no líder quando estamos no parque." E o que estamos fazendo com essas crianças? Dando Ritalina.

BBC Brasil: Isso também mostra como o papel da escola é importante, não?

Richard: Com certeza. Eu diria inclusive que em grandes cidades, as escolas devem liderar o caminho de resgate do convívio das crianças com a natureza, já que as áreas verdes são poucas e a vida dos pais é corrida.

E há estudos mostrando que uma educação baseada no meio ambiente melhora o aprendizado não somente em áreas ligadas à ciências da terra, por exemplo, mas também em idiomas, matemática, história.

BBC Brasil: Mas como isso acontece?

Richard: Há muitos exemplos. São alunos aprendendo a somar ou dividir na beira de lagos. São escolas que exploram as áreas verdes não só em suas dependências mas também no bairro.

Há dados impressionantes mostrando como alunos de escolas baseadas no meio ambiente se saem melhor em testes tradicionais e também desenvolvem melhor a capacidade de ter um pensamento crítico, de solucionar problemas, de tomar decisões, entre outras características cognitivas.

BBC Brasil: E esses impactos positivos se dão sempre que a criança tem mais contato com a natureza, seja na escola ou não?

Richard: Exato. Pegue os exemplos dos parquinhos. Há dois tipos: os com brinquedos estruturados (escorregador, balanço, etc.) e os chamados "playground de aventuras", em que em vez dos pisos de cimentos, temos terra, areia, grama; e não tem brinquedos prontos, e sim tocos de madeiras, morros e afins.

Pesquisas mostraram que crianças brincando nesse playground natural tinha uma propensão muito maior de inventar seus próprios jogos, de convidar outras crianças para a brincadeira, inclusive crianças de outras idades e outros gêneros, e de brincar de uma maneira mais cooperativa. É isso que a natureza proporciona para as crianças.

BBC Brasil: Você cita muitas crianças pequenas. Para uma mais velha, com dez ou 11 anos por exemplo, é tarde demais para reconquistar esse convívio com o ambiente natural?

Richard: De jeito nenhum. Nunca é tarde demais. É claro que o ideal seria começar isso desde de bebê até os três anos. Mas o nosso cérebro tem o que se chama de plasticidade. E graças a ela abrem-se janelas para mudar os caminhos neurológicos que usamos para aprender ou perceber coisas novas em qualquer idade.

BBC Brasil: A poucas quadras daqui, há uma área (na Rua Augusta, centro de São Paulo) que virou alvo de disputa e que pode tanto virar um grande empreendimento imobiliário como um parque municipal. Certamente, há disputas assim em todas as grandes cidades do mundo. Como o sr. se posiciona diante dessas situações?

Richard: É preciso ter uma visão pragmática. Por isso eu diria que o prefeito precisa colocar na ponta do lápis. Quanto a cidade gasta com saúde pública, com problemas como síndromes respiratórias, sedentarismo e saúde mental? Uma área verde no meio da cidade pode ajudar nisso.

Outro ponto: já está mais que provado que quando há um parque natural em uma determinada área, todo o entorno é valorizado, elevando o valor de mercado das propriedades ao redor. Isso também precisa entrar na conta. Aliás, a gestão municipal pode fazer muita diferença.

BBC Brasil: Por quê?

Richard: Eu queria lançar um desafio para o prefeito de São Paulo, como eu fiz na China. A cidade tem metas de ser uma cidade rica em áreas verdes? Isso pode entrar no marketing da cidade, para atrair grandes empresas, por exemplo.

Quais as metas de São Paulo ou de outras cidades no Brasil para ter mais parques, áreas de caminhadas, playground naturais, trilhas?

BBC Brasil: O sr. acha que isso hoje não é encarado como prioridade?

Richard:
Bem longe disso. Um parque é encarado como uma coisa a mais para se ter, algo extra, um mimo. Enquanto pensarmos assim, nada vai mudar.

Porque a verdade é que uma área verde não é algo legal para se ter, é algo do qual todos precisam. É parte da nossa humanidade ter contato com a natureza, é parte dos direitos humanos básicos, como muitos órgãos internacionais já reconheceram. Por isso não pode ser negado pelas autoridades.

BBC Brasil: Além das autoridades e das escolas, qual o papel dos pais nessa retomada de contato das crianças com a natureza?

Richard: Como em tudo, os pais precisam ser exemplos. Precisam também usufruir da natureza - mesmo porque isso é benéfico para todas as idades. Precisam proporcionar passeios ao ar livre para as crianças, mostrar a importância desse contato...

BBC Brasil: Mas será que os pais que vivem dias corridos nas cidades dão conta disso também?

Richard: É importante é deixar claro que não é preciso ir acampar toda a semana, fazer trilhas na mata todo dia. O convívio com a natureza se dá também em atos simples, compatíveis com o dia a dia corrido das famílias atuais.

É ter uma hortinha em casa ou até na varanda do apartamento, é aproveitar áreas ao ar livre como quadras esportivas, quando não houver um superparque perto de casa. E até mesmo ler "Tom Sawyer" ou outros livros que despertem o encantamento das crianças com a natureza.