Topo

"Não há adulto na prisão porque os pais deram afeto demais", diz pediatra

Onde a criança dorme e como é uma decisão que deve ser tomada pelos pais - Getty Images
Onde a criança dorme e como é uma decisão que deve ser tomada pelos pais Imagem: Getty Images

Ana Castro

DO UOL, em São Paulo

09/11/2014 08h05

“Sou um pediatra a favor das crianças.” É assim que se define Carlos Gonzalez, médico pediatra há 25 anos. Espanhol, autor de oito livros, fundador da Associação Catalã de Amamentação e pai de três filhos já adultos. Ele conta que escolheu essa profissão pela oportunidade de poder conversar com as crianças.

Na contramão de muitos colegas de especialidade, Gonzalez se coloca a favor de acolher a criança toda vez que ela chora e de que os pais dividam a cama com o filho, se essa for a melhor forma de conduzir o sono da família, entre outros pontos polêmicos.

Nesta entrevista, o especialista coloca os seus pontos de vista sobre esses e outros temas relacionados aos cuidados com a criança.

UOL Gravidez e Filhos: A cama compartilhada é muito criticada por alguns profissionais. O que o senhor pensa sobre esse assunto?

Carlos Gonzalez: Ninguém pode definir onde é melhor uma criança dormir, a não ser a própria família. O importante é que os adultos saibam que têm o direito de escolher a forma que é melhor para o sono de todos. E que podem mudar quando essa maneira parar de funcionar.

UOL Gravidez e Filhos: Por que muitos pais esperam que seus filhos durmam sozinhos?

Gonzalez: Alguns dizem que "nós temos de ensinar as crianças a dormirem como se deve”. Acontece que a forma normal para os humanos dormir é acompanhada. A maioria dos humanos dorme acompanhada durante boa parte da sua vida. Se tivéssemos de ensinar alguma coisa, seria dormir assim. Mas isso não é necessário.


A vida tem diferentes fases. Quando crianças, dormimos acompanhados, quando jovens, dormimos sozinhos por pouco tempo e, ao atingir a idade adulta, voltamos a dormir com alguém, às vezes, só com o nosso parceiro, e, por longos períodos, também com os nossos filhos.

o pediatra espanhol Carlos Gonzalez - Divulgação - Divulgação
O pediatra espanhol Carlos Gonzalez
Imagem: Divulgação

UOL Gravidez e Filhos: Por que não se deve deixar os bebês e as crianças chorando, como sugerem muitos pediatras?

Gonzalez: Porque eles estão chorando! É tão óbvio que não vejo a necessidade de uma justificação adicional. Sou um médico, trato pacientes com tuberculose. Por que não se deve deixar uma pessoa com tuberculose? Ninguém faz tal pergunta. Sou pai, consolo meus filhos chorando.

UOL Gravidez e Filhos: Muitos médicos criticam atitudes como ceder ao choro da criança ou acolher o filho que chora; dormir na mesma cama, ninar a criança ou oferecer o peito para que ela durma e, por fim, amamentar em livre demanda e até o desmame natural. Por que o senhor os considera tabus?

Gonzalez: Esse é o mistério. Por que essas coisas são "proibidas"? São, justamente, a parte mais agradável de ter filhos. Se você carrega seu filho em seus braços, vão dizer: "assim ele nunca vai querer andar", mas, se você levar em um carrinho de bebê, ninguém lhe diz isso. É que nenhuma criança vai se acostumar com o carrinho? Claro que não. Nenhuma criança se acostuma nem com o carrinho nem com os braços. Não acho que as crianças são seres do mal, à espreita nas sombras, sempre à espera de uma oportunidade para "manipular" os pais. As crianças nos amam e precisam de nós.

Os pais devem fazer o que acham correto. Meus pais não precisaram de qualquer teoria ou de um especialista para cuidar de mim. E meus avós menos ainda. É preciso deixar os livros e as teorias de lado e olhar para seu filho. E decidir você mesmo. Seu filho chora quando você o deixa no berço e se acalma quando você o pega. O que acha que deve fazer? Seu filho está brincando com uma faca afiada. O que você acha que tem de fazer? Será que você realmente precisa de uma autoridade que te dê permissão para confortar e cuidar de seu bebê quando ele chora ou de alguém que te mande pegar a faca da mão dele?

UOL Gravidez e Filhos: Por que muitos pais têm tanto medo que seus filhos fiquem mal acostumados? O afeto, abraços, conforto podem prejudicar a criança?

Gonzalez: Não há nenhum adulto na prisão ou no manicômio porque seus pais deram afeto demais, cantaram para ele dormir, contaram muitas histórias e o consolaram quando ele estava chorando. Infelizmente, é exatamente o oposto: há pessoas na prisão ou em manicômio porque foram abusados por seus pais, abandonados ou humilhados.

UOL Gravidez e Filhos: O senhor é fundador e presidente da Associação Catalã de Amamentação. Qual é a importância da amamentação prolongada?

Gonzalez: O leite materno não perde valor nutritivo com o tempo. Portanto, as mães podem amamentar até quando a criança desmamar naturalmente ou quando ela decidir parar. O leite materno vai continuar nutrindo a criança, mesmo que ela seja mais velha e coma outros alimentos. Eu, por exemplo, com mais de 50 anos, ainda tomo leite de vaca. O leite de vaca não alimenta mais depois de uma certa idade? Algumas coisas que dizem sobre a amamentação são absurdas.

UOL Gravidez e Filhos: Muitos pais fazem de tudo para que a criança coma: ligam a TV, ameaçam tirar algo do filho, prometem recompensas. Isso é necessário?

Gonzalez: De nenhuma forma. Ao contrário, é perigoso. Temos na Europa toda, e creio que no Brasil também, uma epidemia de obesidade infantil. É perigoso insistir para que uma criança coma mais do que deseja.

UOL Gravidez e Filhos: Mas como saber o quanto é necessário que a criança coma?

Gonzalez: Muito fácil. Coloque a comida na frente da criança e ela comerá o que é necessário. Sozinha. Com a colher ou, se ainda não souber usar, com as mãos. É claro que uma criança enferma pode perder o apetite e comer menos do que o necessário e começar a perder o peso. Nesse caso, é preciso levá-la até um médico para diagnosticar e tratar sua doença. Mas não se deve obrigá-la a comer, porque isso não vai curá-la.

UOL Gravidez e Filhos: Como ajudar as crianças a terem uma relação saudável com a comida?

Gonzalez: Deixando que elas comam tranquilas. Jamais insistir, obrigar, prometer, ameaçar, instigar, enganar, chantagear, premiar ou distraí-la para que ela coma.

UOL Gravidez e Filhos: O senhor acredita que exigimos muito das crianças: que durmam a noite toda, que não chorem, que se comportem sempre?

Gonzalez: Na Espanha, a situação das crianças mudou drasticamente em poucas décadas. Eu não fui para a escola até os seis anos. Agora, a maioria das crianças espanholas vai para a creche antes dos seis meses e come lá desde o primeiro dia. As pessoas daqui acham que isso é normal, porque não conheceram outra realidade, mas não é normal. Na Alemanha e nos países escandinavos, poucas crianças frequentam o jardim de infância antes de três anos.

Nunca as crianças ficaram tanto tempo separadas de seus pais, desde o começo dos tempos, como agora. Não foi assim na Renascença ou Idade Média, não era assim no tempo dos romanos ou dos fenícios. As crianças de hoje, pelo menos na Espanha, são as que passam mais tempo longe de suas mães e sozinhas em toda a história da humanidade. E ainda há quem tenha coragem de dizer que as crianças de hoje são mimadas.