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Casal de cegos conta como usa criatividade para criar filho de 4 anos

Camila e Anderson com o filho Gabriel - Arquivo pessoal
Camila e Anderson com o filho Gabriel Imagem: Arquivo pessoal

Bárbara Therrie

Colaboração para o UOL

11/06/2017 04h00

De um lado, Camila Harumi, 38, tinha o sonho de ser mãe; do outro, Anderson Farias, 39, nunca quis ser pai. O que eles têm em comum e como acabou essa história? Ambos são cegos, casados e contam em entrevista ao UOL como é criar o filho Gabriel, que hoje tem 4 anos.

O fato de ter nascido cega não tirou da ex-bancária o desejo de ser mãe. “Sempre tive esse sonho independentemente da minha deficiência visual”, comenta. Já Anderson, que enxergava só 15% na infância e perdeu a visão completamente aos 7 anos de idade, rejeitava a paternidade: “como eu nasci com glaucoma, a possibilidade do meu filho também ser cego era grande”.

Juntos desde 2008, os dois amadureceram a ideia da gestação só em 2011, quando concluíram a faculdade de Gestão de Eventos. Camila convenceu o marido, que é instrutor de um curso de DJ para cegos, de que aquele era o momento para engravidar. Seis meses depois, ela estava grávida

Eles esperaram uma semana para saber se filho era cego

O dia 4 de março de 2013 finalmente chegou e com ele a expectativa para a vinda do Gabriel. “Quando fui ao centro cirúrgico, brinquei e disse ‘quero o melhor lugar para assistir ao parto’”, relembra Anderson, que arrancou risadas da equipe médica.

Com três quilos e 48,5 cm, Gabriel nasceu de cesariana e foi para os braços do pai: “senti muita emoção, independentemente de ter visão”. Já Camila teve sua primeira conexão com o filho dois dias depois do nascimento dele, no aniversário dela: “ele ficou segurando e apertando minha mão com aqueles dedinhos pequenos”.

Com um misto de emoções pela chegada do bebê, o casal ainda vivia a expectativa de saber se o filho era cego ou não. Mas a resposta da visão perfeita só veio quase uma semana depois, após uma bateria de exames.

Foi tranquilizante saber que ele não iria passar pelas dificuldades que nós passamos, conta o pai.

Criatividade no lugar da visão

De volta para a casa, a ex-bancária e o instrutor tinham pela frente a missão de criar o filho. Na primeira semana, a avó materna ficou com eles para dar suporte e, depois, eles assumiram os desafios, conta Anderson. “Não fiquei com medo de dar banho nele, busquei a posição mais confortável para segurá-lo e foi tranquilo”, explica a mãe de primeira viagem, que colocou em prática as dicas que tinha recebido num curso para grávidas.

Se no banho deu tudo certo, na hora de alimentar o pequeno Camila esbarrou na primeira dificuldade por não conseguir enxergar. “Como não podia amamentar, tive de preparar a fórmula de leite. Para cada 30 ml de água, precisava colocar uma medida de leite, mas como iria medir a água sem ver?”, me questionei. “Foi quando resolvi usar um copo dosador para xarope de 15ml e funcionou”.

Essa foi apenas uma das ideias que ela e o marido tiveram ao longo do tempo. Se por um lado a falta de visão limitava a execução de algumas atividades, por outro, eles usavam a criatividade para superar as dificuldades.

Anderson e Gabriel - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Bolsa térmica para esquentar o berço

Prova disso foi quando eles notaram que o Gabriel chorava sempre que ia para o berço e suspeitaram que isso ocorria porque a cama estava gelada. “Eu esquentei a bolsa térmica de água e deixei no berço como se fosse uma pessoa dormindo, depois de aquecido, eu retirei e coloquei meu filho, ele parou de chorar na hora”, conta Camila, orgulhosa pela estratégia bem-sucedida que foi utilizada outras vezes.

Entre tentativas, erros e acertos, a mãe compartilha sua experiência ao trocar fraldas. “No primeiro dia me atrapalhei um pouco, eu tinha acabado de limpar o Gabriel e estava passando a pomada de assaduras, quando minha mãe me alertou que ele ainda estava fazendo cocô, ficou uma mistureba”, lembra rindo. Frustração por não ter visto a situação? Que nada! “Só peguei ele e dei outro banho”, afirma.

Eles se divertem brincando de esconde-esconde

Hoje com 4 anos, Gabriel frequenta a pré-escola das 7h às 13h e está sendo alfabetizado no sistema tradicional de escrita e leitura. “Se um dia ele se interessar pelo braile, a gente vai explicar como funciona”, diz Anderson.

Camila e o filho, de 4 anos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Com a tarefa dada pela escola de ler um livro todo fim de semana, o pequeno é auxiliado pelas madrinhas e pelas avós com a participação dos pais. “A gente ouve a história junto com ele para ao longo da semana relembrar o tema e falar sobre os personagens”, explica o instrutor.

Gabriel não tem certeza se os pais enxergam

Habituado a algumas peculiaridades dentro de casa por causa da deficiência visual dos pais, Gabriel não tem certeza se eles enxergam. “Um dia ele me chamou atenção ao notar minha posição enquanto eu assistia TV”, conta Camila, que lembra a advertência do filho: “mãe, você tem que olhar para a televisão igual eu, não pode ficar de lado”. “Ele tem o costume de nos conduzir pela mão até os lugares em que quer nos mostrar algo”, relata Anderson. 

Sem esconder do filho suas condições, Camila e Anderson não estão preocupados quando chegar a hora de contar que são cegos: “provavelmente a conversa vai acontecer naturalmente”.