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Maconha e maternidade: estas mães não escondem de seus filhos que fumam

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Imagem: Reprodução

Natacha Cortêz

Do UOL, em São Paulo

10/10/2017 04h00

A insônia perturbava Jaqueline Toledo, 24 anos, nos primeiros meses da gestação de Miguel. Como se não bastasse, o enjoo e a falta de apetite eram outros infortúnios com o qual ela tinha que lidar. O santo remédio para os males de uma grávida de primeira viagem foi a maconha. “Passei a fumar antes de dormir, quando me sentia enjoada ou sem vontade alguma de comer. Um trago apenas já trazia um enorme alívio pra tudo isso”, conta ela, que vê na cannabis um propósito terapêutico.

Miguel nasceu e Jaqueline não deixou de fumar seu baseado diário. “Sem abusos, claro, e nunca em ambientes fechados quando estou ao lado do meu filho.” Para ela, a pecha de “mãe drogada” vem junto com uma visão “aprisionante” da “maternidade perfeita” e deve ser combatida. “Sou dona de casa, trabalhadora, mãe amorosa e pago meus impostos. Mas antes disso sou mulher, mando no meu corpo e decido o que faz bem pra ele. Mulheres não são perdoadas quando mães. Pelo contrário: são colocadas na cruz. Imagina então uma mãe que fuma maconha?!” 

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Jaqueline não é um caso isolado. Um estudo do governo norte-americano mostrou que 1 em cada 25 mulheres no país disseram ter usado maconha durante suas gestações. Os motivos delas? Depressão, ansiedade, dores, náuseas e vômitos. O próprio Ministério da Saúde dos Estados Unidos publicou uma espécie de cartilha esclarecendo as consequências do uso da substância nessa fase. De acordo com ela, “Embora sejam necessárias mais pesquisa para entender como a maconha pode afetar você e seu bebê durante gravidez, o uso dela é contraindicado pois o principal componente ativo da maconha, o tetrahidrocanabinol ou THC, pode passar pelo seu sistema para o do bebê”. No Brasil, faltam estudos sobre o tema.

    Sem tabu para falar de maconha em casa

    A empresária Cristina Oliveira tem 58 anos e duas filhas: Andrea, de 28, e Adriana, de 33. Na casa da família, a maconha sempre foi “apenas uma erva natural”, diz a mãe. Cristina fuma desde de quando as meninas eram pequenas. Mas no começo, não fazia na frente delas. “Eu ia fumar no jardim. Até o dia em que a mais nova me perguntou por que eu e meu marido precisávamos sair de casa pra usar.” Foi quando Cristina abriu o jogo com a filha e o baseado entrou porta a dentro de casa. “Eu tinha uns 11 anos e meio que já entendia o que meus pais faziam, só ficava estranho por que não faziam na nossa frente. Essa conversa esclareceu as coisas. A partir dali, confiei mais na minha mãe e me muni de informações em relação à erva”, conta Andrea que hoje não é uma consumidora da cannabis.

    Maconha - Getty Images  - Getty Images
    Imagem: Getty Images

    Carolina Guerra se lembra bem de como o cigarro de maconha era tratado em sua casa quando ela era uma menina. “Meu pai se escondia nos fundos da casa pra fumar e ao sair de lá chupava uma bala de menta. Minha mãe fumava escancaradamente na minha frente, mas quando eu perguntava o que era, dizia que não era assunto de criança.” E onde a pequena Carolina aprendeu o que era maconha? Na escola. E aprendeu o que? “Que era uma droga proibida, que levava as pessoas pra cadeia. Concluí que meus pais eram bandidos que iam pra cadeia. Passei a esconder toda a maconha da minha mãe que eu achava na casa. Até que um dia resolvi mostrar a ela que eu sabia o que ela estava fumando. Da pior maneira possível, pra mim e pra ela, eu descobri o ‘segredo’. Isso me rendeu anos de terapia”, afirma a cantora.

    Hoje, aos 27 anos, Carolina é mãe de João, 11, e Nina, 8, e decidiu: na casa dela, maconha não é tratada como tabu. “Minha intenção nunca foi fumar na frente das crianças, até porque é um momento que considero só meu, de relaxar e ler um livro, mas a conversa com meus filhos é franca. João sabe o que fumo e por que fumo, sabe do contexto político e de que maconha é coisa pra adulto. Com Nina eu ainda não precisei conversar, ela só enxerga como um cigarro artesanal.”

    Não basta o discurso ideológico

    A psicóloga Ana Olmos atende a crianças, adolescentes e suas famílias há 30 anos. Maconha já foi tema em seu consultório incontáveis vezes. Segundo ela, é preciso cautela antes de “apresentar” a substância às crianças. Não basta o discurso ideológico sobre proibicionismo e guerra às drogas, é importante que se fale abertamente dos efeitos da maconha no corpo humano e dos perigos de um uso abusivo. “Não duvido que a honestidade entre pais e filhos seja o melhor caminho, mas não podemos confundir diálogo aberto com incentivo. Pais são figuras exemplo para as crianças. É aí que entra o cuidado redobrado quando falamos de drogas ilícitas como a maconha, com pouquíssimas  pesquisas na saúde, ainda mais no Brasil. Dizer que você usa é uma coisa, encorajar o uso é outra.”

    A maconha pode trazer consequências negativas para o bebê

    Já aconteceu do pediatra Carlos Eduardo Corrêa receber mães que, amamentando, pedem conselhos sobre continuar fumando seus baseados. “Não que seja uma recomendação fumar maconha enquanto se dá de mamar”, ele responde a elas, mas “mães felizes criam filhos felizes, então minha proposta é programar o aleitamento”. Ele está falando sobre ordenhar o leite e estocá-lo. “Não há necessidade de desmamar por querer ter sua vida social ou por qualquer outro motivo. O leite ordenhado pode ficar até 15 dias congelado no freezer, e nessas pausas, a mãe poderia usar a maconha.”

    Se a ordenha não é uma alternativa, o médico muda o discurso: “Assim como o álcool, a cannabis pode trazer consequências negativas para o bebê se ingerida pela mãe durante a gravidez ou durante o aleitamento. Então, é prudente evitar regular consumo nessas fases.”

    O site espanhol e-lactancia.org, projeto da APILAM, associação para promoção e pesquisa cultural e científica de aleitamento materno, vai ao encontro com a sugestão de Carlos e considera de “alto risco” o consumo de maconha durante a amamentação. De acordo com eles, o THC se acumula no tecido adiposo das mamas e pode sim atingir uma concentração alta no leite humano.

    Ginecologista e obstetra no Hospital Albert Einstein, Renato Kalil é radical quanto ao uso de maconha durante a gravidez ou a amamentação. De acordo com o médico, "enquanto a droga que dispomos for fruto de um mercado ilegal e por isso, adulterada, nenhum consumo pode ser dito como totalmente seguro. A partir do momento que contarmos com uma maconha legalizada, controlada, mais pura e tivermos estudos do uso dela com gestantes e lactantes que comprovem a garantia da saúde do bebê, aí podemos começar a conversar sobre o assunto".

      Pais são exemplos e isso requer cuidado

      A psicóloga Ana Olmos atende a crianças, adolescentes e suas famílias há mais de 30 anos. Maconha já foi tema em seu consultório incontáveis vezes. Segundo ela, é preciso cautela antes de “apresentar” a substância às crianças. Não basta o discurso ideológico sobre proibicionismo e guerra às drogas, é importante que se fale abertamente dos efeitos no corpo e dos perigos de um uso abusivo. “Não duvido que a honestidade entre pais e filhos seja o melhor caminho, mas não podemos confundir diálogo aberto com incentivo. Pais são figuras exemplo para as crianças. É aí que entra cuidado redobrado quando falamos de drogas ilícitas como a maconha, com pouquíssimas pesquisas na saúde, ainda mais no Brasil. Dizer que você usa é uma coisa, encorajar o uso é outra bem diferente!”

      Silvia Maria Gonçalves, psicóloga no Hospital da Criança, concorda: "Adulto é sempre modelo de identificação para a criança, por isso o uso de qualquer substância que possa causar dependência, seja ela ilícita ou lícita, deve ser feito com prudência". Mas e se seu filho perguntar sobre a droga, se ele vier com dúvidas ou questionar se você a consome? Nesse cenário, "segredo não é a melhor saída", diz a psicóloga. "Relações entre pais e filhos devem ser construídas com diálogo honesto, isso cria vínculo. No caso de uma conversa sobre maconha, é importante considerar a idade da criança e sanar as dúvidas dela conforme sua capacidade de entendimento. E isso varia muito de família para família, de criança para criança."

      Lei brasileira não é conclusiva sobre o tema

      Quando o assunto é maconha, a legislação brasileira estabelece diferenças entre usuário e traficante, mas deixa espaço para interpretações. A lei é subjetiva. Cada cabeça, uma sentença. Na teoria, quem é apanhado com pequenas quantidades da droga, a tem apreendida, é levado à delegacia e depois a um juiz. A partir daí, trata-se de uma decisão que fica a cargo do magistrado. A ele, cabe escolher entre prestação de serviços à comunidade, curso sobre os males das drogas e advertência a respeito do efeito nocivo da droga.

      No entanto, "o direito penal brasileiro tem caminhado para uma descriminalização do uso de entorpecentes, principalmente da maconha', acredita Stela Valim, advogada criminalista. Em 2016, a Anvisa liberou o uso de produtos à base de canabidiol, substância química encontrada na planta da maconha, e "a previsão é que até o fim desse ano o assunto seja regulamentado", aposta a jurista. Enquanto isso, pessoas têm conseguido na justiça o fornecimento de medicamentos à base dessa substância para tratamento de doenças. "No geral, vejo a sociedade se mostrando mais aberta para a discussão do tema."