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Está tudo bem se você não interagir com a barriga (e seu bebê) na gravidez

A construção do vínculo com o filho vai se dar, de fato, depois do nascimento - Getty Images
A construção do vínculo com o filho vai se dar, de fato, depois do nascimento Imagem: Getty Images

Adriana Nogueira

Do UOL

31/10/2017 04h00

Até a década de 1980, achava-se que o útero era como uma caixa-forte, que isolava o feto do mundo exterior. Com o avanço da medicina, viu-se que não era bem isso o que acontecia. Entre outras coisas, hoje, sabe-se que, a partir da 20ª semana de gravidez, o bebê reage a estímulos auditivos.

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Diante dessa informação, pipocaram estudos falando dos benefícios de conversar, ler, colocar música para a barriga. Mas e quando a mãe está passando tão mal com a gravidez –com enjoos e outros incômodos--, não tem tempo ou simplesmente não se sente à vontade para fazer essas coisas? Haveria um prejuízo para o vínculo mãe e filho?

Para a psicanalista Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) e diretora do Instituto Gerar, instituição que oferece tratamento e faz pesquisas nas áreas de perinatalidade e parentalidade, a resposta é não.

“Se a mulher quer fazer todas essas coisas, ótimo, mas se ela não quer ou não consegue, tudo bem. Nada do quem vem antes do nascimento garante o que vem depois”, afirma a especialista.

Mãe é mãe, gestante é gestante

Vera diz que ser mãe é muito diferente de ser gestante. “Muitos casos de depressão pós-parto aconteceram depois de gravidezes maravilhosas. E há mulheres que não curtirão estarem grávidas, por causa das transformações físicas e mal-estar, e isso não afetará em nada o relacionamento com o filho, quando ele nascer.”

A psicóloga, educadora perinatal e doula Tarsila Leão fala que essa discussão sobre o desenvolvimento do bebê no útero pode colocar ainda mais pressão sobre a mulher.

“Há grávidas que são mais introvertidas e por isso não se sentirão bem conversando ou lendo para a barriga. Outras não terão tempo mesmo, porque além de preparar as coisas práticas para a chegada do filho, como quarto e enxoval, ainda trabalharão até perto de dar à luz. Por isso, esperar que a mulher faça todas essas coisas só vai deixá-la culpada por não atender às expectativas.”

Amor instantâneo

Vera Iaconelli diz que, ao cuidar de si, a grávida já está fazendo o que pode de melhor em relação ao filho. “Aquelas que curtem fazer todas essas coisas em prol do desenvolvimento do bebê, devem fazer porque sentem prazer, não esperando resultados lá na frente.”

Tarsila complementa: “Cuidar da própria alimentação, passar um creme na barriga já são formas de construção de vínculo com a criança”.

A psicanalista do Instituto Gerar ainda desmistifica o tal amor instantâneo que algumas mulheres dizem sentir ao se descobrirem grávidas. “Na verdade, ela está apaixonada pela gestação. É como se casar com um desconhecido. Você pode curtir a expectativa do casamento, os preparativos para a cerimônia e a festa, mas só vai conhecer o noivo na hora. É um amor que será construído.”

Mãe suficientemente boa

Segundo Tarsila Leão, diante das informações trazidas sobre o que pode beneficiar o desenvolvimento do bebê ainda no útero, a mãe acaba com uma responsabilidade ainda maior sobre ela, e o impacto disso poderá ser sentido no próprio filho depois.

“Se a mulher acha que tem de ser uma mãe perfeita, o filho, à medida que crescer, sentirá que tem de corresponder a essa perfeição, causando um transtorno nessa relação”, fala a psicóloga e educadora perinatal.

Tarsila diz que a mãe que entende que falhar faz parte do processo da maternidade ensina o filho a lidar melhor com as frustrações. “O filho precisa ver que a mãe falha. Winnicott [Donald Woods Winnicott, pediatra e psicanalista inglês] falava que a mãe suficientemente boa consegue fazer isso.”

Alerta para a depressão

A especialista, no entanto, só alerta para a necessidade de se prestar atenção na mulher para perceber se ela não está triste, insatisfeita ou indiferente em demasia com a gravidez. “Se tudo está muito ruim para a futura mãe, pode ser sinal de uma depressão. Fala-se muito da doença no pós-parto, mas ela pode se instalar ainda na gestação.”

Segundo a psicóloga e terapeuta familiar Marina Vasconcellos, vai ser uma pequena parcela das gestantes que viverá essa lua de mel com a barriga e com tudo o que se pode fazer pela criança, ainda dentro da barriga.

Medo de julgamento

“As mulheres mais sensíveis, mais românticas talvez façam. Mas a grande maioria estará preocupada em descobrir o que comer para não ficar enjoada. Mas isso não é falta de afeto. A construção do vínculo vai acontecer mesmo com a rotina de cuidados, depois do nascimento.”

Apesar da fala de Marina, na prática, vê-se poucas mulheres falando abertamente que não gostam de estar grávidas ou que não conversam com a barriga. O motivo? Medo do pesado julgamento que pode recair sobre elas.

“Se a gravidez está transcorrendo bem, se a criança está saudável, a sociedade coloca que a mulher não tem direito de reclamar. E não ter o direito de falar é um passo para a mulher adoecer.”