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'É loucura dizer que pobre não tem hábito alimentar', diz embaixador da ONU contra a fome

Italiano defende há quase 30 anos um sistema mais justo de produção e consumo de alimentos - Divulgação
Italiano defende há quase 30 anos um sistema mais justo de produção e consumo de alimentos Imagem: Divulgação

Rafael Barifouse

Rafael Barifouse

27/10/2017 14h53

O italiano Carlo Petrini é conhecido mundialmente por ter criado o movimento Slow Food, por meio do qual dedicou quase metade da vida a tentar mudar a forma como nos alimentamos, da produção no campo aos pratos à mesa. Hoje embaixador da ONU contra a fome, ele veio ao Brasil nesta semana para eventos de sua organização em São Paulo, e não ficou nada satisfeito ao saber dos mais recentes planos da cidade para erradicar a fome.

A prefeitura anunciou, entre outras medidas, a distribuição para a população de baixa renda um composto industrializado, a farinata, feito com alimentos que seriam descartados. Ao defender suas propriedades nutricionais, o prefeito João Doria (PSDB) disse se tratar de um alimento "abençoado" e o comparou a "comida de astronauta".

Seus críticos, porém, apelidaram o composto de "ração para pobre". Em reação a isso, Doria reafirmou o que falou na TV há alguns anos, quando comandava um reality show: "O pobre não tem hábito alimentar, tem fome". "Dizer isso é uma loucura. Esse é um prefeito muito, muito limitado", afirmou Petrini à BBC Brasil.

"Conheço pobres da África e da América Latina que têm uma grande consciência alimentar, uma cultura alimentar muito mais importante que a desse prefeito. Conheço pobres no campo que têm um conhecimento incrível sobre as matérias primas e que comem muito bem."

Petrini evitou criticar a farinata diretamente. "Não conheço sua qualidade, como é produzida, se é feita só produtos que iam para o lixo". Mas, em seguida, questionou se é possível comer o composto "em um restaurante de qualidade daqui".
Diante da negativa, retrucou: "Por que não? Por que os ricos não podem comer? E os pobres precisam comer isso? Não se resolve a fome com produtos que iam para o lixo".

Petrini conversou com a reportagem em uma conferência de gastronomia na região central de São Paulo, onde estava para apresentar a edição brasileira da Arca do Gosto, projeto criado por sua ONG para catalogar ingredientes únicos de cada culinária. Ele ainda participará neste sábado de um jantar beneficente elaborado por chefs renomados para destacar ingredientes nativos do país ameaçados de extinção e do lançamento de um documentário.

"Hoje, se tem essa ideia ruim de que a gastronomia é para ricos. Não acredito isso. A gastronomia é para todos, é o patrimônio alimentar de cada país."

Comida boa, limpa e justa

O italiano de 68 anos é jornalista e sociólogo, mas é seu ativismo que o distingue. Foi em um protesto em 1986 contra uma loja da rede McDonald's em Roma, aos pés da Escadaria Espanhola, um dos pontos mais visitados da cidade, que tudo começou. Três anos mais tarde, em contraponto à tendência do fast-food ("comida rápida", em inglês), seria oficialmente fundado o movimento Slow Food ("comida lenta").

Apesar do nome, não se trata exatamente de comer sem pressa, mas de desacelerar a produção e o consumo de alimentos, fortalecendo produtores locais e gerando menos impacto ao meio ambiente, e de fazer comida "boa, limpa e justa", como diz o lema da organização, que tem 100 mil membros em 160 países.

Esse trabalho conferiu a ele honras como ser eleito pelo jornal britânico The Guardian como uma das 50 pessoas que podem salvar o planeta e o prêmio Campeão da Terra, o mais importante na áerea ambiental conferido pela ONU, para a qual Petrini atua desde o ano passado no combate à fome na Europa como embaixador de sua agência para agricultura e alimentação, a FAO.

Foi com essa autoridade que ele discursou para ministros da agricultura do G7, o grupo das sete maiores economias do mundo, em uma reunião em Bergamo, na Itália, há cerca de dez dias. Ele defendeu para os governos de Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos que eles tenham um ministério dedicado à alimentação.

"Hoje, há ministério para agricultura, mas isso é só uma parte da alimentação, que é fruto do trabalho de muitas pessoas. É uma ciência holística que envolve também pescadores, artesãos, antropólogos, historiadores, economistas, cozinheiros. Precisa de um ministério especial", disse à BBC Brasil.

Petrini defendeu ainda que o livre-comércio não é possível se não houver uma proteção especial para os 500 milhões de pequenos e médios produtores do planeta. "Os pequenos produtores não têm capacidade de comprar apoio político nem de fazer lobby como as multinacionais, e são eles que fornecem 75% dos alimentos da humanidade."

Uma pesquisa da Transparência Internacional mostrou que mais da metade do Congresso brasileiro foi eleito em 2014 com doações de empresas da indústria de alimentos - um ano depois, o financiamento de campanhas por empresas acabou proibido pelo Supremo Tribunal Federal. Foram ao todo R$ 500 milhões, três vezes mais do que nas eleições de 2010. "Não é correto um conceito de livre-comércio que defende apenas os interesses de quem produz 25% da comida no mundo", disse Petrini.

'Ato político'

A Slow Food busca fazer isso de forma mais intensa desde que criou a rede de produtores Terra Madre, em 2004, o que, segundo seu fundador, levou um movimento até então bastante restrito aos países mais ricos às regiões menos desenvolvidas na Ásia, África e América Latina. É esse conceito que também está na mente do italiano quando ele defende que "comer é um ato político". "Se escolho produtos de multinacionais, favoreço essa realidade insustentável atual."

Mas todas as grandes corporações são alvos de suas críticas? "A maioria. Há empresas virtuosas, que pagam bem os produtores e agem de forma sustentável, mas a maioria trabalha com o paradigma da quantidade e não da qualidade." Diante dos argumentos de que a produção agropecuária em massa é necessária para alimentar os 7,6 bilhões de habitantes do mundo, Petrini garante que isso "não é verdade".

"Essa é uma ideia de uma economia doente. Hoje, produzimos comida suficiente para 12 bilhões de pessoas, mas 35% vai para o lixo. Isso é ridículo e vergonhoso. A primeira coisa que temos de trabalhar é o desperdício", defende.

Ele também rejeita críticas de que o estímulo aos cultivos orgânicos e familiares é elitista, porque seus produtos são mais caros do que os tradicionais.
"Na Itália, era mais caro no início, mas, depois que a produção aumentou, o preço caiu. Ainda custa mais do que o outro, sempre vai ser assim, mas é uma questão de saúde: gasto mais com a comida e economizo com remédios."

Petrini argumenta ainda que a crítica do desperdício "vale para todos", inclusive para as "classes mais baixas". Dá como exemplo a praça de alimentação de um shopping que visitou no Brasil, um lugar de uma "tristeza infinita", em suas palavras. "Paga-se muito pouco, come-se muito mal e há muito desperdício, justamente porque é tão barato", disse.

"A comida perdeu o valor nos últimos 50 anos. Precisamos pagar um pouco mais pela comida para compensar de forma justa o produtor. Hoje, isso não acontece, e, assim, a categoria que mais passa fome no mundo é a de agricultores."

Moqueca, bobó e feijoada

Petrini diz que o contingente de pessoas que passam fome no mundo deve aumentar. Ele acompanha o levantamento de dados da FAO e afirma que, dos 815 milhões atuais, deveremos passar de 850 milhões no próximo ano por causa de "guerra, terrorismo e miséria".

Na América Latina, o número de pessoas nessa situação cresceu 6% no ano passado, de acordo com dados da ONU, passando para 42,5 milhões de pessoas, ou 6,6% dos habitantes da região, enquanto o Brasil manteve o índice abaixo de 2,5% dos seus 207,7 milhões de habitantes.

Ao mesmo tempo, vem aumentando no mundo o número de pessoas com sobrepeso ou obesas. Divulgados em janeiro, os dados mais recentes da FAO mostram que 20% da população brasileira estava obesa em 2014 - eram 17,8% quatro anos antes - e 54% estava acima do peso, enquanto na América Latina um terço dos adolescentes e dois terços dos adultos enfrentavam esses problemas.

No mundo, há 700 milhões de obesos, segundo um estudo publicado no periódico científico The New England Journal of Medicine, o qual apontou que a prevalência desse mal mais do que dobrou em 73 países desde 1980.

Entre os motivos, está o aumento do consumo de alimentos hipercalóricos com baixo valor nutritivo. Dados da consultoria Euromonitor, mostram que, entre 2011 e 2016, aumentou em 25% a venda de produtos industrializados e em 30% o consumo de fast-food. "São duas faces do mesmo problema", diz Petrini. "Talvez fosse melhor o prefeito de São Paulo dar aquele alimento a essas pessoas (os obesos)."

No âmbito pessoal, o italiano conta que reduziu seu consumo de carne em 60% nos últimos cinco anos, preocupado com o consumo excessivo desse tipo de alimento no mundo, especialmente em países desenvolvidos. Segundo dados da FAO de 2015, a média global é de 41,3 kg, enquanto, em nações industrializadas, chega a 95,7 kg.

Mas ele não advoga necessariamente pelo vegetarianismo ou sua vertente que exclui todo produto de origem animal, o veganismo. "É uma escolha pessoal. O mundo não é uma Igreja Católica. Cada um age como quiser." E não vê com bons olhos o costume de se alimentar pensando apenas no viés nutricional, um comportamento que, se exagerado, pode ser caracterizado como um distúrbio alimentar, a ortorexia.

"É uma ideia redutiva do valor da alimentação. Ao nascer, somos alimentados por nossas mães. É um ato de amor que nos permite viver. É até mesmo espiritual, porque, em toda religião,a ligação do homem com o divino passa pelo alimento." E quais são seus pratos brasileiros preferidos? "A moqueca e o bobó", conta ele. "E farofa. Com feijoada, é o casamento perfeito."