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"Usava faixa para esconder meus seios e fingir que era homem no trabalho"

Danielle usou faixas para esconder seus seios por oito anos - Arquivo pessoal
Danielle usou faixas para esconder seus seios por oito anos Imagem: Arquivo pessoal

Helena Bertho

Do UOL

18/01/2018 04h00

Por oito anos, a contadora Danielle Scarlat, 31, fingiu ser homem no trabalho por medo do preconceito. Ela iniciou a transição de gênero em 2009, mas usava faixas para esconder os seios e roupas masculinas, para não ser julgada pelos colegas. Em 2017, ela decidiu mudar esse cenário e ficou surpresa com a resposta que teve de seus empregadores. Aqui ela conta como foi, finalmente, poder trabalhar sendo quem realmente é.

"Sou do interior de Minas Gerais e, desde pequena, sempre fui muito reprimida. Gostava de coisas de menina. Não conseguia me ver com menino, mas o ambiente era muito hostil a isso. Então fugia desse sentimento. Sem ainda saber sobre pessoas trans, achava que era gay.

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Em 2005, decidi me mudar para a capital, para fazer faculdade e também poder me assumir. Foi o que fiz, comecei a me envolver com homens. Mas não encontrei nisso a realização que buscava. Os relacionamentos não me faziam feliz, não me completavam. Eu ainda não entendia que minha questão não era de orientação sexual e, sim, de identidade de gênero. 

Cheguei a ser drag queen na noite"

Como sempre me interessei por maquiagem, nessa época, comecei a acompanhar reportagens e vídeos sobre o assunto, e testava o que via em mim. Aos poucos, fui pegando gosto por usar coisas femininas, como sair com make ou de salto.

Tinha um amigo que também adorava essas coisas, e resolvemos atuar como drag queen na noite. Nós nos montávamos, fazíamos apresentações e nos divertíamos. Mas, mais uma vez, aquilo ainda não era o que me completava.

Drag queen não é mulher, é uma performance. Fazer drag é ser um homem vestido de mulher para se apresentar, e eu achava muito caricato. Ainda havia dentro de mim coisas para serem reveladas, e passar por isso me ajudou a me descobrir.

Danielle quis mostrar seu trabalho e fortalecer sua posição profissional antes de se assumir por medo do preconceito - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Danielle quis mostrar seu trabalho e fortalecer sua posição profissional antes de se assumir por medo do preconceito
Imagem: Arquivo Pessoal

Comecei a tomar hormônios com uma amiga"

Foi quando uma amiga começou a própria transição que passei a entender quem sou: uma mulher. A questão não era me fantasiar de mulher e, sim, poder ser uma. Então, em 2009, passei a tomar hormônios.

No começo, fizemos isso sem acompanhamento. Uma comprava e dava para a outra. Injetávamos escondidas, e eu não tinha ideia do efeito real que teria no meu corpo. Foi tudo muito rápido.

Meu corpo mudou, minha voz afinou, as formas mudaram, os seios apareceram, e eu entrei em desespero.

Sou contadora e a área em que trabalho ainda é muito conservadora e machista. Tinha medo de me assumir e ter consequências. Então, comecei a usar faixas para esconder meus peitos e, apesar de estar me reconhecendo como mulher, eu me vestia como homem para trabalhar.

Fora do trabalho, soltava o cabelo e subia no salto"

Entre 2009 e 2010, comecei a entender bem o que é ser mulher trans, mas não estava preparada psicologicamente para assumir isso. A família foi a primeira dificuldade que encarei. Contei para minhas irmãs, depois, meus irmãos, que me receberam muito bem. Já meus pais nunca perguntaram nada.

A partir desse momento, deixei de ir para minha cidade, para não ter falatório.

Na vida fora do trabalho, cada vez mais, fui sendo eu mesma. Fora do emprego, soltava o cabelo, colocava calcinha e sutiã. Seja com amigos ou familiares, estava confortável em ser eu.

O mercado é muito transfóbico"

Em 2011, comecei a fazer terapia e, em 2013, passei a fazer acompanhamento com endocrinologista. Duas coisas que me ajudaram em todo o processo de aceitação e também a fazer a transição com mais cuidado.

Mas, no trabalho, seguia com medo de me expor. É que o mercado é muito transfóbico. Tenho amigas que foram demitidas ou eliminadas de processos seletivos só por serem trans, independentemente da capacidade profissional. Eu não podia correr o risco de ficar desempregada.

Então vestia uma faixa bem apertada, um camisão bem largo e blazer. Apesar de estar cada vez mais feminina na aparência.

Meus seios sangravam com a faixa apertada"

Em 2015, troquei de emprego. Comecei a trabalhar na contabilidade do Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro. Fui selecionada e contratada como homem e, por dois anos, a rotina seguiu sendo a mesma.

O problema é que os hormônios mudavam meu corpo cada vez mais. Meus seios estavam crescendo e, com a faixa apertada, chegavam a sangrar. Doía muito.

Essa vida dupla me fazia mal, e não só fisicamente. Vivia agitada, nervosa por conta disso. Na ansiedade de esconder o cabelo, o peito, fingir não ser eu. Aguentava, pensando que precisava provar meu trabalho, minha capacidade, antes de poder me expor.

Até que foi ficando insuportável. No meio de 2017, percebi que não dava mais. Fui ao RH do hospital e contei tudo: sou uma mulher trans, faço acompanhamento psicológico, tomo hormônios e isso me machuca. Quero me assumir, e o começo de 2018 será meu limite para isso.

Foi como pagar uma dívida milionária"

A recepção da direção do hospital foi ótima. Disseram que eu não precisava esconder nada, e organizaram todo um trabalho de comunicação interna para lidar com o preconceito que poderia haver com meus colegas.

Ao revelar no trabalho que é uma mulher trans, ganhou crachá com seu nome social e nunca foi questionada sobre usar o banheiro feminino - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ao revelar no trabalho que é uma mulher trans, ganhou crachá com seu nome social e nunca foi questionada sobre usar o banheiro feminino
Imagem: Arquivo pessoal
Com matérias e e-mails, apresentaram internamente o que é ser transgênero, as questões de preconceito e tudo. Prepararam todo mundo para mim.

E eu fui relaxando. Primeiramente, parei de usar a faixa, depois, de prender o cabelo. Cada vez mais confortável em ser eu naquele ambiente. Até que em 11 de dezembro, decidir ir com tudo. Combinei com o RH e cheguei ao trabalho completamente mulher, com salto, maquiagem e tudo a que tenho direito.

Sabe como me receberam? Com presentes, café da manhã e um acolhimento incrível. Até hoje, ninguém nunca me disse nada preconceituoso ali.

Assim, fechei 2017 como se tivesse pagado uma dívida de milhões de reais, e comecei o novo ano leve, podendo ser eu por completo."